domingo, 13 de novembro de 2011

Homem, lobo do homem. 1ª reedição(*)


Thomas Hobbes(1588-1679).





























Homo homini lupus.

E cheguei à conclusão de que, no mundo inteiro, só existe uma coisa que é real, embora indubitavelmente seja falsificada de muitas maneiras, (...) as leis do movimento Thomas Hobbes, 1651. [1]

O ‘homem em natureza’ de Hobbes é racional, e age como tal, no sentido em que concebemos a racionalidade hoje? Para responder a essa indagação propomos um mergulho fictício nas abismais especificidades da scientia civilis hobbesiana.

Sim, o homem em natureza de Hobbes calcula vantagens, procura por possibilidades e pondera os riscos inerentes a cada uma delas, isso tudo independentemente da vigilância e orientação coercitiva do “Leviatã”, o gigante composto pela coletividade em pacto de sobrevivência não enunciado, subentendido como o Estado. Dentro de “O Leviatã”, a obra mestra que sistematizou a visão política de Hobbes, está a resposta ao que procuramos saber. Este comportamento frio e pré-utilitarista do homo naturalis hobbesiano sinalizaria racionalidade ou instintividade?! Talvez seja preferível pensarmos, aqui, no homem em natureza de Hobbes como um ser intuitivo, pré-racional, algo como uma entidade detentora de um tipo arcaico de racionalidade..., uma razão primeva, rústica, sem acabamento. Uma racionalidade inclinada a favorecer a satisfação imediata das vontades e necessidades animalescas, e não, por exemplo, a racionalidade requintada, falsificada e ornamentada que o tempo e o movimento, agindo sobre os complexos processos socioculturais e neurocognitivos nos legaram. Infere-se disso que o homem contemporâneo, diferentemente do homo in natura seria levado, por meios diversos e inconsúteis, ao hábito de enfeitar, temperar, protelar, enrustir, adornar, encobrir, recobrir, camuflar e disfarçar suas intenções, para poder confundir, despistar, hipnotizar, assustar, alertar, repelir e expulsar os outros lupus predadores, e também para atrair, aliciar, seduzir, provocar, maravilhar e perturbar a presa antes de atacá-la. O homem em natureza, portanto, não esta agindo com o propósito único de evitar se tornar uma presa, mas esta agindo também no intuito de capturar a caça! E para capturá-la ele pode tanto cooperar com outros seres, quanto pode competir com eles, a ponto de eliminar física ou mentalmente o adversário de modo a se apossar posteriormente da presa que no contexto “natural” pode tanto ser um caça/presa para alimentação, quanto uma fêmea ativa para a reprodução.


Biologicamente, isso tudo seria parte do instinto de caçador que herdamos geneticamente de nossos ancestrais. Mas Hobbes, vivendo no século XVII, não tinha senão sua própria intuição para pensar o homem em natureza e sua matemática para auxiliá-lo nos cálculos. Para Hobbes, a cooperação levaria inevitavelmente à formação do Leviatã. A estratégia de ludibriar outros homens, ao invés de colaborar com eles, seria a ação mais natural a se esperar; já a tática cooperativa seria artificial, um pacto temporário de não agressão, mas preservaria a coletividade envolvida no mutirão de subsistência. Os ludibriadores isolados passariam então, com o tempo, a ser entendidos como os tipos trapaceiros de hoje, parasitando o corpo leviatânico e enfraquecendo-o, devendo, em favor da estabilidade e integridade do Leviatã, ser expurgados, banidos ou contidos pela força conjunta e consentida do todo associado. Estes banidos corresponderiam aos nossos encarcerados e aprisionados de hoje.

A humanidade possui dezenas de discursos que procuram justificar a cooperação em escala estatal, e diversos instrumentos coercitivos para converter os intentos egoísticos individuais em objetivos altruístas, humanistas, ambientalistas, preservacionistas, socialistas, libertários, ecumenistas, ecologistas, salvacionistas, messiânicos, milenaristas, filantropistas, socialistas, feministas, anti-homofobistas, anti-racistas, etc, etc. E, por outro lado, possui também mecanismos de exclusão dos indesejáveis e “decididos ‘lobos solitários’", eternos anti-sociais, marginais e foras-da-lei, delinqüentes e afins, geralmente indivíduos de condição sócio-econômica precária, cuja caracterização e constante vigilância mantêm em funcionamento e justifica vagamente a existência dos aparatos policiais e jurídicos de um sistema excludente, remetendo aos presídios, prisões, masmorras, manicômios, campos de concentração, gulags, corredores da morte, vales da morte e outros lócus eliminatórios nossos lobos desgarrados.

Para compreender o “que” seria e “como” agiria o HOMO HOMINI LUPUS hoje, sem a intervenção e vigilância deste enorme Leviatã atual que é o "Estado constitucional de direito”, continuemos nossa breve experiência imaginativa.

Já que, em tese, este homem seria o mesmo animal do tempo de Hobbes (mas não talvez o mesmo do tempo em que o próprio Hobbes o "imaginou", na ante-pré-história!), uma vez que os trezentos e sessenta anos que nos separam do próprio Hobbes não constituem tempo suficiente para que ocorram mudanças biológicas e genéticas significativas na espécie humana, acredito que esse experimento mental seja válido para fins de especulação, reflexão e entretenimento.

Evoquemos um planeta Terra em situação pós-apocalíptica, devastado, digamos, por uma colisão cósmica violenta com um cometa das proporções do Shoemaker-Levy 9[2], o mesmo que se impactou com o planeta Júpiter entre 16 e 22 de julho de 1994. Optamos por essa catástrofe natural já que ela envolve o fator movimento mecânico”, muito importante no sistema hobbesiano de pensamento, com seus fundamentos matemáticos, e também para não termos de recorrer ao ignóbil exemplo de uma guerra nuclear, que por outras vias também renegaria a noção atual de racionalidade, relegando-a aos cânones do esquecimento e descrédito de uma vez por todas.

Como seriam e agiriam os sobreviventes humanos de uma calamidade de tamanhas proporções? Talvez possamos vislumbrar a racionalidade do homo homini lupus de Hobbes conjecturando sobre as condições de subsistência desses supostos sobreviventes. Comecemos pelas estruturas maiores. O que seria feito do ‘Estado’, a multidão unida numa só pessoa, o Leviatã[3]”? Considerando-se que existem diversos Leviatãs no mundo atual, ou seja, diversos Estados organizados, em conflito ou colaboração entre si, podemos supor que uma hecatombe planetária de tamanha intensidade venha a “arruinar permanentemente” ou “extinguir” a maior parte dos Leviatãs mundiais. Se paquidermes gigantescos como os jurássicos dinossauros** sucumbiram em massa sob um impacto cósmico provavelmente bem menos intenso do que o que estamos imaginando agora, podemos com razoável grau de acerto acreditar que seja inevitável a queda, ainda que provavelmente temporária, dos Estados e das instituições que os caracterizam: a organização social espontânea, os sistemas jurídicos, as forças policiais, os governos e a administração pública, os códigos de leis, as constituições, os sistemas educacionais, os sistemas de saúde pública e seguridade social, os sistemas de abastecimento alimentar, elétrico e aqüífero das grandes cidades, os sistemas de transporte e de transmissão de informações, as telecomunicações, os correios e a segurança pública, o sistema bancário e financeiro, e por fim as linguagens estabelecidas; que cederiam lugar aos já presentes dialetos locais e regionais, que por sua vez, posteriormente dariam lugar a linguagens tribais e grupais, devastando em uma geração de sobreviventes tudo o que foi arquitetado lingüisticamente durante milênios de sangrentas e árduas conquistas integralizantes.

Tudo isso cairia como colunas de dominó, a partir de um único e certeiro golpe impelido por movimentos astronômicos de objetos inanimados, bem ao modelo de Hobbes. A civilização como a conhecemos seria reduzida a pó e escombros, e o homem novamente estaria à mercê dos mesmos perigos que o atormentaram durante 99% de seu processo evolutivo. Neste cenário sombrio, os infelizes sobreviventes retomariam a si o que previamente tinham cedido e transferido ao Leviatã, agora um corpo destroçado e putrefato. As opções “naturais”, (i.e, fazer as coisas com total liberdade, usar da violência como e quando bem se entender, rapinar, roubar, usurpar, estuprar, escravizar, exterminar, expulsar e apresar) ressurgiriam violentamente como a única Rule of Lawvigente. A fome, a sede, o desespero, o frio, o medo, a dor e as epidemias transformariam os homens em predadores terríveis dos outros homens. Os sobreviventes se transformariam em verdadeiros ‘lobisomens’, homo lupus, seres de hábitos noturnos, caçando e matando, sozinhos ou em pequenos grupos, por uns nacos de carniça sobre o grande cadáver do que foram os majestosos Leviatãs, uivando sinistramente em direção a lua cheia quando vencedores em uma disputa por comida. Sem as restrições legais que os agora arruinados sistemas jurídicos antes impunham, ainda que imperfeitamente, a todos, os homens reverteriam (...) aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança[4]”.

Sem os vernizes culturais, sem um sistema institucionalizado de ensino e aprendizagem de uma linguagem comum, sem as aparagens das arestas mais espinhosas do caráter humano efetuadas pelo direito, pelas leis e pela violência intimidatória do estado, só sobrariam a racionalidade e a lógica letal do caçador e da presa. Neste hipotético-mas-não-impossível estado de coisas, a própria noção de razão em Hobbes já não se encaixa. Sua acepção assume um sentido muito diferente da noção que veio a ser concebida a partir do Iluminismo, a que nos cabe hoje. Naquela, a razão fica reduzida a simples calculo matemático, intuitivo, de vantagens, riscos e utilidades. O juízo é particular e egoísta, e as maquinações desenfreadas em busca de poder, satisfação e sobrevivência são as únicas normas imagináveis. Nesta condição, toda a lógica do ‘primeiro eu, depois meus filhos, depois eu de novo’ é explicitada e desvelada sem eufemismos. “ - Se eu não sobreviver, meu filho não sobrevive, ou pior, é devorado pelos lobisomens do inverno apocalíptico”. Não há mais convenções sociais que inibam, coíbam ou evitem a ação estritamente egoísta. O único mandamento aqui é o grito que se eleva das próprias entranhas em processo de auto-consumo: “- Sobreviva!”. O resto é o caos que só o tempo reordenará ou não. É ilusão acreditar que, nesse abismo tenebroso[5], haverá altruísmo, fraternidade e ação desinteressada. Talvez seja ilusório acreditar que mesmo hoje essas virtudes estejam em primazia e vigor!

Hobbes foi um matematicista, um mecanicista. Ele próprio reduziu a chamada “razão” ao simples senso de ponderação e racionalização dos impulsos elementares. Vivenciada dentro do Leviatã, a ponderação se reduz a moderação, e esta se traduz em temperança, uma virtude apreciada no homem enquanto zoon politicon, (animal urbano). Entretanto, no estado de natureza hobbesiano, o homem é confrontado e provocado por impulsos íntimos e estímulos alheios. Além de por em movimento as engrenagens de satisfação de seus próprios apetites, necessidades, desejos, aversões e ódios, o homem na natureza luta por poder e satisfação destes anseios com “lobos” semelhantes a ele, lobos que o espreitam e que estão em seu encalço. A sobrevivência então não depende mais da adesão a pactos e acordos coletivos, e sim da força bruta, da luta encarniçada entre lobos solitários e entre alcatéias famintas. Se aceito em alguma alcatéia ou puder formar a sua própria, ele volta a ter força, mas apenas enquanto atento aos objetivos da alcatéia e em consideração a eles, sempre correndo o risco do sacrifício fatal pela vida pelo grupo, caso haja necessidade ou inevitabilidade. Aqui, ele já esta retornando aos estágios iniciais da formação do Leviatã.

E então, no seio do novo monstro que ressurge, as avaliações da conduta alheia recomeçam. O homem civil, deixando a condição de lupus solitarius, volta sua atenção aos ardis e trapaças alheios, queixando-se amarga e desconsoladamente do caráter dissimulado, falso e injusto do outros seres humanos. Mas não repara que suas ações e atividades, e seus próprios discursos, falas, comentários, criticas e enunciados evocam esse mesmo instinto caçador, reproduzindo esse mesmo padrão de mascaramento de propósitos. Essa é a falsificação dos movimentos civis de que fala Hobbes? Deslocar as atenções, distrair as vigilâncias, tirar de foco os entendimentos e comover as platéias/alcatéias seriam parte de uma grande estratégia tramada nas entranhas do Leviatã para garantir sua sobrevivência? Talvez, já que desde que passamos a viver em sociedade precisamos do ‘outro’ para a consecução de nossos intentos, e nossos intentos sempre disseram respeito, ao menos pelos milhões de anos que antecedem o surgimento do Leviatã, à sobrevivência, à reprodução, à dominação, à satisfação de impulsos naturais instintivos, em inter-relação com os demais. Algo como as “pulsões”, de que falava Freud[6]. Tendo vivido em constante luta contra os caprichos do ambiente e contra as ameaças naturais dos predadores mais aptos, em contínua concorrência contra outros caçadores, inclusive os de nossa própria espécie, desenvolvemos estratégias muito complexas para obter o que precisamos e para evitar virarmos banquete de feras. Estes artifícios, estratégias ou técnicas de caça, e este verdadeiro “manual de sobrevivência[7] humano, em oposição ao mundo natural com todos os seus perigos, são transmitidos, hoje, se estou certo, por meios genéticos, e se adaptam ou moldam à linguagem e práticas que herdamos culturalmente. Mas aqui há um aparte que me parece importante. No mesmo pacote herdado de instintos caçador-competidores (não há instintos de ‘presas’, mas há instintos de identificação, detecção e fuga dos predadores) existe um gabarito ou arcabouço de linguagem, como diz Steve Pinker, um instinto da linguagem, com o qual todos fomos dotados. Segundo esse psicólogo cognitivo, o que herdamos geneticamente é o instinto para desenvolver o dom artístico da linguagem. Entretanto, penso na linguagem como uma estratégia evolutiva de sobrevivência bem sucedida, pelo menos até o presente. Se transformamos linguagem em ‘arte’ é porque devemos ter instintos separados para linguagem e para as artes. A camada cultural e mais superficial do discurso apresenta referencias contextuais ou históricas aprendidas e apreendidas pelo falante em seu desenvolvimento como ser social, como zoon politicon. Já a camada profunda do discurso contém referências arcanas pertencentes ao primitivo mundo de caça, caçadores, presas e predadores; ao mundo de fugas, ciladas, armadilhas, ataques, cercos, abates, brutalidades, desmembramentos, cooperação, partilha, cortejos, galanteios, coitos, cópulas, partos, disputas, lutas, espreitas, vigílias, perseguições, andanças, migrações, marchas, pausas, repousos, sustos, terrores, medos, expectativas, tocaias, rituais, emboscadas, etc., em que viveram por milhões de anos nossos ancestrais. Forçoso então é admitir que, já que vivemos por milhões de anos evoluindo em um ambiente hostil de caçadas e concorrências sem leis devemos ter desenvolvido táticas e estratégias para escravizar, cativar, matar, aliciar, roubar, enganar, confundir, desalojar, iludir, apoderar, aprisionar, prender, capturar, intrigar, zombar, caçoar, humilhar, submeter, vingar, desforrar, punir, retaliar, estuprar, raptar, saquear, pilhar, etc., e que criamos aversão por estas ações por influência da cultura, via religião, direito e moralidade, qualidades encontradas nos Leviatãs mundiais em diversas variantes

Vivendo hoje em sociedades ordenadas por leis, costumes e instituições que controlam e restringem certas ações, que estimulam e recompensam outras, e que punem e coíbem outras, somos por vezes levados a pensar que optamos por agir pacificamente (em relação ao próximo) por espontaneidade. Refletimos essa crença em nossos discursos sobre o ‘Bem’, a ‘Justiça’, o ‘Amor’, a ‘Paz’, a ‘Caridade’, a ‘Fraternidade’, a ‘Liberdade’, o ‘Direito Natural’ e até sobre a ‘Democracia’(que se tornou um valor e um dogma amplamente aceito). No entanto, é difícil crer que doze, quatorze ou dezesseis mil anos de cultura tenham sido suficientes para mudar tão radicalmente uma natureza instintiva, geneticamente transmitida, de milhões de anos. Seria atribuir um poder transferência, de superação e de autodisciplina ao homem, e de resignação à influência da cultura sobre nossa conduta que não condiz com as observações da violenta história mundo humano. O que observamos repetidamente e nos mais diversos lugares e épocas são os homens tentando burlar inconseqüentemente desde as mais tolas proibições e "contravenções", até as mais severas, punitivas e retaliatórias leis e condenações sociais. E por quê? Porque o gabarito instintivo aciona certas condutas de nosso arcabouço “esquecido”, o arcabouço do caçador, do homo lupus, o arcabouço primal do animal que combateu a tudo, durante milhares de milhares de anos, pela sobrevivência. Assim, logo que o indivíduo acredita estar ele ou os seus ameaçados de alguma forma, surge em sua mente a justificativa de que em nome da sobrevivência, da honra tribal, do interesse grupal e familiar, e da defesa pessoal, ele pode, e as vezes até deve, matar, roubar, eliminar, calar, manipular, submeter outros homens e subverter a lei e a ordem estabelecida no Leviatã.

A mim, os exemplos fictícios acima remetem, nos mais remotos limites, ao instinto de caça embutido em nossa natureza à milhões de anos, que nos fazem pensar, calcular, medir, avaliar, ponderar, manobrar, falar e agir como predadores ou como caçadores em concorrência; que nos fazem reagir, desconfiar, replicar e conjecturar como ‘presas em potencial’, tentando evitar cair na cilada do predador! Fazemos isso involuntariamente, através de ‘programação’ prévia, biológica, do contrário não seríamos animais, o que indubitavelmente somos e que por falso recato não admitimos, preferindo o epíteto de “Filhos de Deus”, seres feitos "modesta e despretensiosamente" à semelhança de um Ser que imaginamos Perfeito, Onipotente, Onipresente e Onisciente.

Hobbes criou seu ‘sistema’ tendo em vista sua Inglaterra nas tormentas da guerra civil. Hoje as tormentas se multiplicaram e se ampliaram, e não estou certo de que o modelo hobbesiano se aplica com eficácia ao que hoje observamos. O que tentamos aqui foi uma alegoria teórica e especulativa embasada na sombria visão do homem como homo homini lupus. Entretanto, concorrência, predação humana, falsificações e simulacros são parte integrante e indissociável de nossa realidade. Metodologicamente falando, eu tentei demonstrar que a qualidade e virtude do Leviatã, tomado como uma realidade formada por nós, dentro de nós e acima de nós, não deve ser confundida com as qualidades, impulsos e virtudes do homem individual.

Hobbes fala da competição entre as três dimensões do homem: a humana, a cidadã e a da cristã, todas em contradição e disputa entre si. Além das diretrizes contraditórias ditadas por cada um destes matizes que, segundo Hobbes, nos condicionariam, existe ainda a competição individual na dimensão gregária e social que decorre de necessidades herdadas, das exigências do "agora" e de objetivos que inventamos e imputamo-nos. Mas isso não implica que os Leviatãs também tenham necessidades biológicas competitivas, ainda que retenham objetivos artificiais ‘inventados’, como o falido "Progresso", que os leva recorrentemente a empreender ataques predatórios contra outros Leviatãs. Ataques leviatânicos que consentimos naturalmente em chamar de “guerras”[8]

Bark at the moon(Ozzy Osbourne...) Agressão e defesa. Ataque e resistência. Conflito, concorrência e colaboração. Cooperação e competição. Acredito que a chave explicativa desses comportamentos resida no legado ancestral, instintivo, genético e natural do homem caçador. Homo lupus.

* Nota explicativa: Certamente não foram os pedidos insistentes/inexistentes dos fiéis leitores que me levaram a “revisar” este ensaio. Pensei em reeditar este breve texto no intuito de apresentar aos amigos do Banquinho do Xadrez uma versão mais limpa, gramatical e sintaticamente, em relação à primeira versão postada em 11/01/11. Algumas análises sobre o sistema hobbesiano de pensamento foram aprofundadas no decorrer do ano, e acreditei ser honesto que as conclusões alcançadas devam se refletir nos “raciocínios” contidos no texto. Dúdis Tozinsky Cobain, ou Dúdis Ninguém. Whatever..., nevermind...!

**Não estamos comparando "dinossauros à Estados-Nações". Apenas usamos uma alegoria, uma metáfora. Os dinossauros podem ter se extinguido pelo fato de terem possuído "sangue-frio", incapacitando-os de se adaptarem a atmosfera densa e escura que se seguiu ao impacto destrutivo do cometa. Sem calor e luz solar direta, eles foram fulminados como espécie em um curto espaço de tempo. Já os Leviatãs ruiriam neste mesmo cenário devido a desorganização e pânico geral causados pelo impacto. "Paquidermes" significam , aqui, "gigantes de pele espessa".


[1] Ver: Skinner, 1996, p. 342. Ou Hobbes, T. M. Opera Philosophica (VITA). (org) Molesworth, 1839. Volume II. p. LXXXI-XCIX.

[2] Sagan, C. Pálido Ponto Azul, p. 354. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

[3] T. Hobbes retirou o nome de seu monstro da criatura marinha bíblico chamada Leviathan. Ver:New World Translation of the Holy Scriptures. Isaiah 27:1.

[4] Ver: Hobbes, T. O Leviatã. Parte II, do Estado.

[5] Ver Hobbes, T. O Leviatã. Parte IV, Do Reino das Trevas.

[6] Ver: Freud, Sigmund, O Mal -Estar na Civilização, pp, 129-194. Coleção os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural,.1979.

[7] Ver: Pinker, S. O Instinto da Linguagem. Como a mente cria a linguagem. Martins Fontes, São Paulo, S.P, 2004.

[8] Ver também: Hobbes, T. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret. 2004. Skinner, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. São Paulo: Editora UNESP & Cambrige University Press, 1999.


sábado, 5 de novembro de 2011

Lapsus tetricus.







Conclui-se que, definitivamente, não agimos como teorizamos, não escrevemos como falamos; não falamos como pensamos e não pensamos como gostaríamos ([...] “-um lugar melhor no futuro? Pense melhor desde agora”) As lacunas entre ideações, expressões e ações são transpostas apenas por precárias pinguelas lingüísticas, tanto no ato de transformar imagens e idéias em palavras, ou sensações em informações utilizáveis, quanto no ato de traduzir todos estes produtos simbólicos em “ação”. Nestes pedágios ou “espaços semióticos” de codificação/decodificação a informação que desejávamos transmitir acaba chegando “distorcida” ao âmbito público, seu destino, o que constitui uma tarifa bastante elevada a ser paga e resulta em desleais interpretações de nosso “leitmotiv” [1] original ([...] “somos epifenômenos do processo de seleção natural das espécies em evolução, um epifenômeno em epifania”).E para que seja inteligível, nossa "mensagem" passa pelo mesmo tipo de filtro subjetivo, o do interlocutor, sendo indiretamente transmitida em forma de sons, imagens e estímulos tácteis. A ironia é que o resultado das alterações pode ser melhor do que a mentalização primária que fizéramos, e neste caso possivelmente não haverá problemas com a paternidade da “obra”. Mais difícil de lidar são as “esquisitices” e "aberrações" que surgem vez por outra e que nada representam , expressam ou significam, não obtendo, pelos critérios estéticos vigentes, o status de obra ou arte. Como isto que ora vos apresento...
























Estas instâncias intelectuais, ou “espaços semióticos”, arruínam nossas intenções e nos embaraçam publicamente ao tornar nossas melhores motivações e inspirações em “frankensteins” que pouco ou nada mais são que dejetos lingüísticos..., como este que por hora vos apresento, por exemplo, (“[...] - os mortos que me perdoem, mas terei mesmo de enterrá-los”, pensou o coveiro, antes de tombar ele mesmo numa cova) São “peças” que a mente nos prega, seja por negligência e/ou descuido no preparo e apresentação do conteúdo; seja porque, de fato, é-nos impossível transmitir “verdadeiramente” o que almejamos, só nos restando então a esperança de que o produto final de nossas elucubrações seja, ao menos, algo que não nos coloque em maus-lençóis frente aos leitores e críticos ([...]” - não há nada tão furioso quanto um vulcão; nada é tão gracioso quanto um vulcão!”).

Existem textos que, além de carecerem de serventia pessoal ou pública, não se fazem objeto de interesse ou curiosidade. E a despeito da bibliografia que indicam, não “constroem” nem “tecem” nenhum saber novo, mesmo se desdobrando em interlocuções implícitas e desvelando suas mais intimas fraquezas, como este que ora vos apresento.

Discursos insossos, de difícil digestão, não são exclusividade de medíocres, diletantes e pedantes de nossa época. Sócrates já os denunciava a 2500 anos em referência aos “sofistas” de seu tempo. ([...] –“ruinosa idéia surge em minha arruinada mente enquanto observo, das ruínas de um edifício, ao arruinamento do mundo) Mas os sofismas não foram apanágio de gregos eruditos. Eles persistem, subsistem no espaço e no tempo pois são instrumentos, subterfúgios a desviar a atenção dos que deles se ocupam, impedindo-os de atentarem para aspectos e eventos mais importantes ocorrendo no subtexto, nas entrelinhas e no “outside text[2]... Como no texto que ora vos apresento ([...] – temo o porvir; o dia em que nada mais temerei”)

Sem adentrar nos meandros obscuros do inusitado do mundo e da vida, nos desvios patológicos da mente autoral, nos precipícios das questões irrespondíveis, nas inóspitas regiões das extrapolações verbais, nas selvagens e traiçoeiras corredeiras dos sentimentos desvairados, nas tormentas do destino impiedoso, nas íngremes descidas aos abismos tenebrosos da natureza humana, nos estreitos desfiladeiros do desespero e da desesperança, nas cavernas úmidas e sombrias da incerteza, da dor e da exaustão, eles não agitam as emoções, não comovem, não exaltam e não despertam da modorra cotidiana. Só nos tomam tempo, trabalho e exigem muito “saco” para serem adequadamente, ou minimamente, transliterados e compreendidos ([...] – “Se ela for forte o bastante, sobreviverá”) Justamente o tipo de texto que, ora, vos apresento. ([...] – “Talvez, um dia, volte a ser jovem. No momento sou idoso, e estou exausto”) - "Vocês, eles, os outros, sempre os outros"; vociferava a verdadeira culpada!

Isto decorre do fato de que o homem, aparentemente, ainda não aprendeu a explorar nem a verdadeira “natureza” da expressão lingüística, e nem a sua melhor performance como “utilidade sociológica”; dada sua recente aquisição biológica da linguagem articulada ([...] – “Não sei como nem quando aconteceu! Quando percebi já estava assim..., se decompondo!”). Não deixa de ser interessante imaginar o que será da linguagem humana daqui a alguns milênios. Se houver milênios a se alcançar por nossa brutal espécie. Aparelhos “leitores de idéias”? Transmissores de pensamento? Captadores de intenções? Contatos mentais interplanetários? ([...] – “Só o pensamento viaja mais rápido que a luz!"). Arquivos mnemônicos extra-corticais em forma de circuitos integrados de silício? "Inteligência artificial" do tipo humana? O que poderá ela fazer de “bom” por nós e pela vida na Terra se nós mesmos pouco temos feito? ([...] – “I’m already lifeless. So many times dead..., killed by myself”)

O que eram urros, rugidos, bramidos, gritos ameaçadores e berros lancinantes, gradualmente se tornaram signos fonéticos, enquanto os bandos de hominídeos vagavam em busca de alimento, abrigo e água. A pré-história da linguagem é tão misteriosa quanto a pré-história dos próprios homens. O “salto” seguinte foi a criação da escrita, em torno de 4.000 AC.([...] – “apenas sete por cento do que mentalizamos/imaginamos é transmutado em palavras e frases. Todo o resto é exteriorizado por expressão corporal, gesticulação, postura física, sorrisos e caretas, entonação e fluxo vocal, além dos ainda presentes grunhidos, resmungos e suspiros. E pela arte, sim, a arte...”) Não é surpreendente que, quando mal acaba de deixar as cavernas, as savanas e florestas de caça, pesca e coleta, acredite o Homem ter o dom para a física teórica, para a poética, para a narrativa histórica, as artes cênicas, para a música erudita, para as ciências humanas, para a advocacia, para o sacerdócio; ou para o automobilismo, a aeronáutica, a exploração submarina e espacial? O “salto” tecnológico foi proporcionado pela “domesticação” e normatização súbita da linguagem encetada pela escrita ([...] – “se Ele é incognoscível, insondável, incompreensível, invisível e imperceptível, como querem que eu acredite Nele?). Ainda assim, a linguagem escrita é, em comparação ao enorme trajeto evolutivo percorrido pela espécie, uma pequena “ladeira” onde ela tenta dar significado ao que imagina serem objetos significativos, dignos de um nome, de um adjetivo, de uma descrição. Mas a decifração total dos vários aspectos destes objetos, suas dimensões, sua superfície completa, sua profundidade, complexidade e essência quase sempre escapam aos atentos censores do linguajar humano ([...] – “a linguagem humana é carregada de ‘jargão’ terráqueo. O Homem é incapaz de dissociar-se de seu gabarito lingüístico terreno para ingressar numa esfera maior de compreensão”) Muitas confusões e equívocos são produzidos junto com os tênues e pálidos significados que pretendemos conferir aos diversos fenômenos e entidades exteriores e interiores que vivenciamos e contactamos. Além do mais, somos antropocêntricos demais, ainda, para observar nosso universo e mundo com olhos totalmente objetivos. ([...] –” é como se fosse uma enorme cratera, bem em meio a uma planície, e que representasse o ímpeto de uma certeza equivocada!) Nestas tentativas, nos vemos ludibriados por nossos próprios interesses e motivações que em nada deveriam obstruir esta objetividade. Mas toda “objetividade” parte de uma “subjetividade”. Como então esperar que surjam “verdades” descritas em discursos e linguagens?? ([...] – “muita petulância minha acreditar que sei, por intuição, o que é melhor, interessante, bom e útil aos outros”)

Tentando afastar-me do antropocentrismo no qual me isolei há tempos, esforço-me por evitar julgamentos, avaliações e interpretações pessoais, mas percebi ser esta uma tarefa de Sísifo ([...] – “talento e dons garoto, só se manifestam sob o peso de muito esforço, determinação e persistência!”) Mais honesto é admitir estas limitações pessoais como advindas da própria construção lingüística herdada e mal-empregada . Não nego que haja “verdades”. Assevero apenas que, para alguns, a “verdade” é algo conveniente a ser defendido como absoluto, sem mais inquirições. Enquanto para outros a mesma entidade pode apenas ser tida como “algo real”, algo que possui características que o delineiam de forma aproximada, mas que não abrangem seu todo; e a “verdade”, como tal ou por definição, deveria dar conta do todo ([...] – “tão frágil quanto às pétalas primaveris de flores montanhesas”). [3] Portanto, eis o texto que, por ora, vos apresento.([...] - "e eu ainda sou bem novo, pra tanta tristeza. Deixemos de coisas, cuidemos da vida! Senão chega a morte ou coisa parecida, e nos arrasta moços, sem ter visto a vida...; ou coisa parecida...". Antonio Carlos Belchior, da canção 'Na hora do almoço').


[1] “Outside text”, termo inglês, cuja tradução se aproxima de “externo ao texto”; usamo-lo não obstante o paradoxo de que “tudo” o que está inserido no texto se origina “fora” do texto, enquanto tudo o que é abarcado pelo texto também é englobado pelo texto. Eis uma das chaves da criatividade literária e poética.(ver: Bloom, Harold. Um mapa da desleitura. 2ª edição. Rio de Janeiro: Imago. 2003. Bloom, H. Poesia E Repressão. O revisionismo de Blake a Stevens. Rio de Janeiro: Imago. 1994. Bloom, H. Genio. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. 2003. Bloom, H. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. 2003).


[2] “Leitmotiv” é uma expressão idiomática germânica talhada no universo musical que “significa” “motivo condutor” e “enredo”, enquanto na psicanálise indica uma causa lógica entre duas entidades, e na literatura, um“tema recorrente”.

[3] Bibliografia:

Luhmann, N. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005.

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