terça-feira, 22 de maio de 2012

Margem da Realidade.

Bom dia amigos do Banquinho. Pretendo através deste relato micro-histórico narrar-lhes o episódio de uma fita cassete e seu conteúdo. De como se perdeu e de como se reencontrou uma simples música. A bem da verdade, eu nunca a considerei uma simples música, uma música qualquer. O significado dela e suas implicações na história de minha vida se desdobram até agora, enquanto a ouço. Então, ela não é uma música qualquer para mim! Mas pode sê-lo para outros. Poderia ter sido “apenas mais uma canção” até mesmo para Elvis Presley e alguns de seus produtores! Mas para mim, ela foi, é e será um tipo de tesouro composicional. Uma daquelas obras de arte que beiram a perfeição a nossos ouvidos, e que ademais marcou para sempre minha vida. Talvez a “razão” por trás desta iconolatria musical esteja relacionada a episódios de forte conteúdo emocional vivenciado e viciado; a contextos traumatizantes, marcantes como tatuagens. A situações pseudo-reais e/ou semi-mágicas proporcionadas pelo desmesurado consumo de estupefacientes; pelas amizades seladas a sangue; por amores da juventude perdidos para sempre; e mesmo à despedidas eternas de amigos que se foram...,overdrogados, matados, morridos e auto-exterminados. Enfim, talvez a iconolatria esteja simplesmente atrelada a visões de mundo que direcionaram grande parte de meu roteiro passado e de meu porvir futuro..., caso ainda exista algo a aguardar do satírico e maquiavélico destino.
Esta música certamente significou ainda mais que isto para mim. Mas são sentimentos, lembranças, representações e imaginários que, se forçados à exprimir-se, se tornarão fantasias, e faço aqui um esforço em me ater ao que considero episódios e pessoas verídicas, ao menos da minha dopada perspectiva de então; e também de narrar-lhes sem excessos literários, pois esta é uma arte da qual sou destituído de dons. O texto nada mais é que uma singela historieta. Porém, é mais realista que qualquer “Trainspotting”, com sua estrondosa e elétrica trilha sonora do “Primal Scream”; trabalhos que surgiram como obras artísticas, cinematográfica e musical, no mesmo ano dos eventos aqui narrados, 1996. Ainda assim, este texto mostrou-se um relato que fica muito aquém do "real" vivenciado, ou do que minha reconfiguração contemporânea mental dos fatos narrados gostaria que tivesse sido o tal "real" ...Whatever! "Nevermind", dizia Kurt Cobain. O que é o "real" afinal?
Talvez como muitos outros fãs, eu sempre quis fazer uma homenagem pessoal a Elvis Presley, astro que despertou em mim muitas alegrias e contentamento existencial através de sua música, de seus filmes e de seu glamour e carisma pessoal.Eu vivi enquanto ele vivia! Algo que gerações mais novas não tiveram a chance. Mas o que pegou mesmo e principalmente foi aquela música, naquela voz. Elvis cantou em vários estilos: country, gospel, rock, baladas românticas, homenagens ao Dia de Natal, trilhas sonoras de seus filmes, elegias ao Havaí e a Las Vegas! São óbvias as limitações quanto à qualidade de minhas analises musicais, quanto mais em se tratando de um gigante da música popular da estatura de Elvis! Estas limitações impõem sérias restrições à objetividade de minhas inferências. Mas no caso desta redescoberta de Elvis eu prefiro reconhecer minhas inaptidões e ser considerado um admirador desatinado, ou mesmo um musicomâno, do que perder a oportunidade que ora se apresenta de registrar este episódio.
A questão é que neste sábado, 19 de maio de 2012, em torno das 15h00min, a busca de quinze anos pela música “predileta” de um de meus ídolos musicais terminou de forma jubilosa; e esta realidade, assim como a letra da própria música em questão, é subjetiva ao extremo e não tem como ser posta à prova! “Eu” fui o objeto e sujeito deste júbilo, para desconsolo dos críticos, céticos e cientificistas de plantão. Mesmo considerando a mim mesmo um deles! Estranho paradoxo... Eu estava em companhia de meu primo Renato, escutando a horas trecho por trecho da imensa discografia de Elvis Presley, quando me deparei com um título algo inusitado para as músicas de Elvis. Meu primo é um grande conhecedor da obra deste cantor de alcance vocal inigualável, considerado por setores da crítica especializada como o maior cantor popular do século XX, além de multi-instrumentista, superando até mesmo alguns mestres da música erudita em virtude de seu timbre vocal, da extensão expressiva da mesma, da perfeição rítmica e harmônica deste seu poderoso instrumento natural, a voz. Bem, encômios à parte, o fato é que me aproveitei da presença deste primo/irmão/amigo para apurar a pesquisa, me aproveitando de seus “insights intuitivos”, sensatos, e conhecimento da matéria. Conduzido com o mínimo de paciência exigido pelo método investigativo historiográfico, eu senti que a duradoura investigação teria mais chances de ser bem sucedida com a contribuição de sua presença. Foi assim que, logo que adentrou em casa buzinando e zoando a senilidade do Fido, meu vira-lata, expliquei a ele no que eu estava envolvido há dias, pedindo desculpas por ter de continuar a tarefa por pelo menos mais um punhado de discos e horas, creditando uma maior chance de sucesso na pesquisa a sua presença. Sua simples companhia passou a ter albores de algo ligeiramente promissor e de bom agouro... Estranho! Uma situação realmente incomum para ambos, céticos e pragmáticos caçadores de musicalidades..., passar um sábado ensolarado a caça de uma música a qual não sabíamos o nome, a letra, o ano de gravação ou em qual das categorias musicais em que Elvis se embrenhou ela se incluía: rockabilly, rock n’ roll, country music, rhythm and blues, folk music, gospel, músicas natalinas, elegias à Las Vegas e ao Havaí, baladas românticas, oferendas musicais a pessoas amadas, trilhas sonoras para filmes hollywoodianos (alguns estrelados por ele), jazz-fusion, reinterpretações de clássicos que causavam admiração até mesmo a seus compositores e intérpretes originais. O que havia de “concreto” em relação à música perdida, e apenas em minha memória, eram partes da introdução instrumental da musica, que evocava vozes em coral feminino, trombones e trompetes, em tom Lá maior, e um ar de psicodelismo e “space music”, que não eram condizentes com o repertório comum de Elvis. E o repertório de Elvis Presley é enorme, realmente vasto, indo de músicas conhecidas mundialmente, à gravações que nunca saíram “oficialmente” dos estúdios.
Vou iniciar o relato de como conheci e me envolvi tão profundamente a esta música, e os amigos perceberão o quão significativa ela foi e é para mim. Tudo começou no inverno de 1996. Em julho deste ano Bóris Yeltsin foi eleito Presidente da Rússia, agora principal país da Federação Russa, mas ainda assim um escombro político da antiga e outrora poderosa União Soviética. Em novembro de 1996 Bill Clinton assumiu a presidência dos EUA. Neste ano perdemos um dos melhores compositores que este país já viu e ouviu. Renato Russo morreu de AIDS em outubro; e nos EUA o renomado cientista espacial Carl Sagan foi levado em dezembro pelo câncer. Musicalmente, o Def Leppard e o Metallica tinham lançado, respectivamente, “Slang” e “Load”, com grandes músicas e vendas. O guitarrista “Slash” anunciou sua saída do Guns N’ Roses em outubro deste mesmo ano. Também saiu neste ano o álbum “Roots”, do Sepultura.
Mas a questão é que neste período eu não estava mais ligado no que estava rolando na cena musical, pois estava totalmente vencido pelo vício. Ou melhor, vícios. Tinha-os todos!! Desde tabaco, passando por maconha, “bolas”, coca e crack , até os opiáceos: codeína, alfentanil, dolantina, petidina, morfina, não descartando o Elixir Paregórico e o xarope Eritós..., e qualquer outro “junk” do tipo que me oferecessem..., mandava-os pra dentro sem muita cerinônia. Fazia parte de meus excessos hedonistas habituais no período. O meu controle sobre eles tinha já se invertido em um controle deles sobre mim fazia já um bom tempo. O álcool era o substituto natural destas químicas mais pesadas em épocas de carestia financeira, se é que eu cheguei algum dia a ter o que se pode chamar de finanças..., mas continuemos.
Um grande amigo desta época era o “Punk”, figura muito simpática - com os “chegados”-, e carismática. Um grande devedor e enroladão, além de um fã fanático de Elvis, apesar de ouvir também, o que lhe valeu o apelido: Sex Pistols, Ramones, Ratos de Porão, Camisa de Vênus, Plebe Rude, The Damned, Dead Kennedys, The Clash, The Smiths, Madness, Joelho de Porco, Garotos Podres, etc. Somente coisas singelas. Hardcore era bem vindo, contanto que os skinsheads ficassem “na deles”... Mas não havia muitos deles em Franca, e para uma boa briga de "gangs" era preciso ir a São Paulo, na Galeria Pagé, ou a Belo Horizonte. Uma boa briga não era necessariamente evitada nesta época de inconsequências hoje tidas por absurdas e letais. Que seja. Adorávamos o “Punk”. Cara independente, louco, "cabeça", brigão, valente e o mais velho do grupo. Morava sozinho em sua casa no Vicente Leporace, onde frequentemente nos reuníamos para ouvir música e usar alguns aditivos psicotrópicos. O “Punk”, em mais um dos paradoxos produzidos por sua estranha mentalidade, não curtia drogas, apenas álcool e tabaco, o que para o resto de nós nem eram consideradas substâncias psicotrópicas, ou “drogas”. Em uma noite bem animada levamos fitas cassete para o “Punk” gravar algumas seleções do Elvis de sua enorme coleção, que era seu tesouro. Mais tarde compreendemos porque gravava tão caridosamente suas raridades...; simplesmente para não ter de emprestar!! Uma tática bem conhecida, ainda utilizada hoje em dia. Para nós, e por nós quero dizer eu, meus primos, amigos, bicões, junkheads, fumeiros, bebuns, drogueiros, meninas sem rumo, músicos, perdidões e outros de nossa laia, aquilo era tudo era fantástico, psicodélico e arriscado como escalar o Matterhorn chapados e sem "guias"!! Nesta memorável ocasião, “Punk” gravou para mim uma seleção de músicas do Elvis realmente incomum. Eu não conhecia nenhuma delas, ou apenas uma ou duas. O resto me era material desconhecido. Foram duas fitas K7 completas. Apaixonei-me de imediato pelas músicas, e passei a ter orgulho e ciúmes de minhas adoradas fitas! Os nomes das músicas não foram anotados, de modo que aprendi a cantá-las e gostar delas do jeito que eram: despidas de todo o aparato comercial que envolve as músicas “vendidas” em lojas especializadas: discos, fitas e hoje CDs com capas, selos e encartes explicativos. As referências começaram a se diluir ainda mais uns dois anos depois, quando “Punk” se casou, e a turma começou a se dispersar. Em 1998 fui convidado pelo amigaço “Marcinho” e seu irmão, o saudossíssimo Marcão para uma ranchada com seus primos malucões de Campinas. O rancho já me era conhecido, eu adorava-o. Ficava encravado precariamente em um penhasco que por sua vez pairava sobre o lago artificial da Represa do Estreito. Da varanda do rancho podia-se dar “pontas”, mergulhos de cabeça no lago que deveria ter uns 50 metros de profundidade no local..., além dos galhos de algumas arvores que haviam sido encobertas pelo represamento do rio há uns vinte anos antes daquela época. Na varanda havia uma mesa de snooker que era a alegria da galera. Nestas ocasiões é que se aprende a jogar de vez, ou se desiste de tentar aprender! Não havia fichas, os tacos eram, como a mesa, de qualidade. Passávamos a noite inteira conversando sobre os mais variados e viajantes assuntos, aditivando os motores neuronais, tocando e ouvindo muita música. Nesta ocasião levei minhas fitas do Elvis. Aquelas que o “Punk” havia gravado para mim. Neste meio tempo eu já havia perdido a esposa, o emprego, a vergonha, a reputação e certos valores e princípios morais mais elevados. Estes amigos eram de uma categoria social mais "instruída" e polida, e estavam ligados em uma vertente musical um pouco diferente da minha. Suas preferências eram Rolling Stones, MPB, Raul Seixas, Beatles, Queen, Barão Vermelho, Belquior, Oswaldo Montenegro, Zé Ramalho entre outras amenidades. Eu ainda preferia Elvis Presley, Pink Floyd, Emerson, Lake and Palmer, Ramones, Nazareth, Jimmi Hendrix, Alice Cooper, Black Flag, Black Sabbath, The Prodigy, Nine Inch Nails, Primal Scream, Buffalo Springfield,Bob Dylan, Dinosaur Jr, Slade, Neil Young, Talking Heads, Cream, Creedence Clearwater Revival, Napalm Death, Guns N' Roses,Sonic Youth, Oasis, ELO, Led Zeppelin e AC/DC, entre outros. Sempre eclético. Mas confluíamos em vários interstícios musicais e cantávamos juntos, em mútua desafinação, com o Marcão no violão, instrumento com o qual tinha uma familiaridade instintiva, para resumir. Na segunda noite, com o pessoal bem baqueado pela balada da primeira noite, que tinha sido em claro, sentei com minhas fitas do Elvis para afogar as mágoas com goró e mato bravo. Num incidente idiota, coisa de bêbedo trincado, esbarrei nas caixas de fitas, e derrubei uma delas, que estava no alpendre, para dentro do lago!! Fiquei puto a ponto de me xingar de todos os nomes horríveis que já vinha ouvindo a algum tempo de terceiros, una mierda! Minha fita preferida do Elvis, com “aquela” música, estava agora na companhia das lampreias do fundo do lago escuro e frio... Minha ranchada ficou algo nebulosa depois disso, pois aquela música super-especial, diferente e monumental do Elvis, que me trazia consolo, mas a qual eu não sabia o nome, estava na fita afogada na represa! Dali em diante tenho procurado por esta música por vários meios. Amigos como o Veloso e o Norival, bons conhecedores de música, não souberam interpretar minha versão balbuciada sem letra, sem harmonia, sem refrão, etc, etc. O velho “Punk” sumiu. Em resumo, a esperança de reencontrar a música só me ocorreu com o advento e incremento da Internet no Brasil. Mesmo com a internet não é fácil encontrar uma música a partir de tão poucas referencias. Dizem existir programas que reconhecem o padrão de entonação cantado externamente e, gabaritando a harmonia e a melodia, apresentam alternativas possíveis para uma música em busca. Mas isso surgiu no Brasil agora, que eu saiba, 14 anos e meio depois daquele incidente idiota causado pelo meu alcoolismo/toxicomaníaco... That was a shame about me! Neste sábado entretando, depois de procurar num site de discografias que disponibiliza “trechos” de musicas de seus conteúdos, iniciei uma paciente procura por todos os títulos desconhecidos. Eu procurei então por títulos que não fossem românticos; que não estivessem relacionados com a fissura de Elvis pelo Havaí e por Las Vegas, ou que não contivessem nomes de musas femininas como “Sylvia”, “Priscilla”, “Caroline”, etc; ou com hinários pentecostais, com o Natal (Christmas), ou com o Rockabilly dos anos 50 de Elvis. A música perdida, eu estava certo, nada tinha a ver com estas vertentes principais de seu repertório, e nem estava entre as mais difundidas pela poderosa industria fonográfica norte-americana. Resolvi então tentar uma última busca nas trilhas musicais de seus filmes hollywoodianos e nos temas country, pois a música em questão tinha tons, timbres e notas que evocavam uma “imensidão espacial” que poderia estar relacionada com as amplidões do oeste norte-americano.
Neste site então iniciei uma paciente procura por todos os títulos desconhecidos para mim. Em dado momento, estava discutindo a tradução de alguns títulos estranhos com meu primo quanto me deparei com o seguinte: “Edge of Reality”. O título estava em uma rara coletânea de discos “side B” de músicas editadas como trilhas sonoras para os próprios filmes de Elvis, possivelmente do ano de 1968. Há alguns vídeos no You Tube cuja música compõe a trilha sonora de um tipo antiquado de “clip”, e que tem o mesmo título em inglês: “Edge of Reality”. Amigos, não há como descrever o que este simples “achado” significou para mim. Os norte-americanos tem uma expressão que se adéqua bem ao que ocorreu. O achado “Make my Day”, (ganhei meu dia!), diriam. Estou radiante até hoje, três dias depois de redescobrir a música de meus sonhos e pesadelos.
Aqui vai a letra e uma tradução “liberal” dela, feita por mim. Traduções “literais” de músicas distorcem ainda mais o significado que as traduções "liberais", que buscam a sintaxe do conjunto temático da música, e não só a interpretação gramatical ao pé da letra, ignorando as gírias e expressões idiomática do idioma em questão. Se oferecerem uma tradução melhor, agradeço desde já. Abaixo segue o link da música e do clip disponibilizados no You Tube. Procurei pelo melhor som e imagem. Espero que apreciem. Ela é, desde o momento em que a ouvi pelo primeira vez, uma de minhas músicas prediletas... Um abraço a todos!! Grato pela paciência!
Edge Of Reality. Elvis Presley . I walk along a thin line darling. Dark shadows follow me. Here's where life's dream lies disillusioned. The edge of reality. Oh I can hear strange voices echo. Laughing with mockery. The border line of doom I'm facing, the edge of reality. On the edge of reality she sits there tormenting me, the girl with the nameless face. On the edge of reality where she overpowers me, with fears that I can't explain. She drove me to the point of madness. The brink of misery. If she's not real then I'm condemned to the edge of reality. On the edge of reality she sits there tormenting me, the girl with the nameless face. On the edge of reality where she overpowers me, with fears that I can't explain. She drove me to the point of madness.The brink of misery. If she’s not real then I’m condemned to..., the edge for reality. Reality, reality, reality, reality. Margem da Realidade ( Livre tradução). Eu ando ao longo de uma linha fina, querida Sombras escuras me seguem. Aqui é onde o sonho da vida jaz em desilusão. É a margem da realidade. Oh, eu posso ouvir vozes estranhas ecoarem. Rindo com escárnio. É a fronteira da condenação que estou enfrentando. A margem da realidade. Ela esta senta lá, na borda da realidade, me atormentando. A menina com um rosto sem nome. No limiar da realidade é onde ela me sobrepuja. Com temores que não posso explicar. Ela me levou ao ponto da loucura. À beira da miséria. Se ela não é real, então eu estou condenado à margem da realidade. Ela esta sentada no limiar da realidade, me torturando. A menina com um rosto sem nome. Do limiar da realidade, onde ela me domina. Temo não ser capaz de explicar. Ela me levou ao ponto da loucura. À beira da miséria. Se ela não for real, então eu estou condenado à margem da realidade. Realidade, realidade, realidade, realidade. Dúdis Tozinsky Presley Cobain. http://www.youtube.com/watch?v=fy4_FmqXlC4&feature=results_video&playnext=1&list=PL55B76313CB64B497

terça-feira, 1 de maio de 2012

LEVANTADO DO CHÃO


Gerações da família Mau-Tempo são ceifadas pelo latifúndio. A vida sendo consumida nas searas do Alentejo é apenas o microcosmo da estrutura fundiária de Portugal, tão dramaticamente pintada por José Saramago em seu “Levantado do Chão”. As vidas se passam e parecem não passar, como em um déjà vu, Domingos Mau-Tempo, João Mau-Tempo, Antônio Mau-Tempo...Um personagem sucede o outro, permanecendo a mesma desgraçada existência daqueles  que tem por único horizonte um pedaço de pão para o dia seguinte.  
Começam e terminam guerras, finda a monarquia, a república de Salazar abre suas asas de corvo sobre Portugal, tudo muda, mas não muda. Permanecem os Mau-Tempo, e tantos milhares de outros como eles, existindo apenas com o único fim lubrificarem a máquina construída por Deus, desde o início dos tempos, e diria Saramago, dos Maus-Tempos. Assim diz o padre Agamedes, confortando os pobres desgraçados com as dádivas d’além túmulo. Lamberto, Gualberto, Adalberto e tantos outros “Berto”, representam uma das extremidades da “Santíssima Trindade”, formada também pela Igreja e pela Guarda, que conforta de outras formas, um tanto quanto doloridas. O Latifúndio, tal qual uma entidade viva, nutrindo-se do sangue e suor daqueles que vieram ao mundo tão somente para isso, excreta apenas as formas cadavéricas e sem vida, já que essa nas searas ficou.

Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou gado rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães, põem-nos a crescer de qualquer maneira, tanto faz, preciso é que venham a ter força e destreza de mãos, mesmo que para um gesto só, que importância tem se em poucos anos ficarem pesados e hirtos, são cepos ambulantes que quando chegam ao trabalho a si próprios se sacodem e da rigidez do corpo fazem sair dois braços e duas pernas que vão e vêm, por aqui se vê a que ponto chegaram as bondades e competência do Criador, obrando tão perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral. (José Saramago)


A escrita nada convencional de Saramago, e por vezes até um pouco árida ao leitor pouco familiarizado, transforma-se ao longo dos capítulos. Os personagens, antes “meros repetidores passivos e submissos de discursos alheios”, assumem as rédeas da narrativa, tal qual o fazem com suas próprias existências. Já não são mais simples objetos descritos pelo narrador, ao contrário, se descrevem, assumem as responsabilidades por suas ações. Após décadas de luta, que culminam na Revolução dos Cravos de 1974, os camponeses do Alentejo marcham para o Latifúndio, não mais para servirem Adalberto ou Gualberto, mas agora para serem senhores de si mesmos.
Como uma força da natureza os camponeses marcham. Não há mais “Senhor Padre Agamedes” ou Guarda que os detenham. Os mortos se levantam da terra que antes não lhes pertencia e qual numa procissão, mãos dadas aos seus camaradas, levantam-se do chão para o nascer de um novo dia.

“Levantado do Chão” fala de trabalhadores. Aprendemos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação. (José Saramago).