sábado, 21 de julho de 2012

DEMASIADO HUMANOS?

Dud’s Tozinsky consegue quebrar uma castanha com martelo e saborear o fruto em companhia do seu famélico cachorro Fido. E daí? Um chimpanzé da bunda dourada consegue a mesma façanha e além do uso da ferramenta, esse animal “fabrica” sua própria ferramenta, pois ele modifica galhos de árvore para enfiar no cupinzeiro e capturar seu banquete. Saimov consegue empurrar uma torre na cara do rei do Mauricinho. E daí? Um primata não humano consegue encaixar cubos em seus devidos lugares, coisa que Saimov só faz com muita dificuldade. Mauricinho aprendeu em seu meio cultural a sujar o calçadão da praça com os restos do seu cigarro. E daí? Uma população de Bonobos desenvolveu um engenhoso sistema para separar o trigo da areia jogando tudo na água...O que flutua é trigo. Essa prática continuou sendo ensinada dentro dessa população mesmo quando desapareceu a necessidade, tornando-se assim, uma espécie de ritual. Nesse sentido, a partir um conceito mais amplo de cultura, podemos dizer que esses primatas também a possuem, pois essa prática é ensinada dentro do grupo, e não “herdada geneticamente”.
É com base nesses argumentos, claro que expostos de forma mais elegante do que o fiz, que o historiador Felipe Fernández-Armesto questiona os argumentos que até hoje tínhamos como certos para nossa auto-distinção em relação aos outros animais. Claro que existem diferenças óbvias e assim, é impossível confundir nosso amigo Xandão com uma capivara, por exemplo, exceto talvez quando disputam uma partida de xadrez. Porém, para Armesto os humanos não ocupam um lugar especial na evolução, ao contrário, são apenas um dos tantos galhos da árvore evolutiva, uma entre tantas possibilidades que ficaram pelo caminho ou tomaram outro rumo.
Em “Então você pensa que é humano?” o professor Armesto desconstrói boa parte da argumentação que fundamenta os humanos como “essencialmente” diferentes, a parte, das outras espécies. O autor chega mesmo a sugerir que outros primatas deveriam ser classificados no gênero “homo”. Para tanto, Felipe Fernándes-Armesto se fundamente em recentes estudos sobre os primatas, que revelam comportamentos bastante similares aos nossos, como por exemplo, solidariedade, tristeza, capacidade de prever efeitos, certos comportamentos que podem ser enquadrados como culturais, além da habilidade para utilizar e fabricar ferramentas.

Em janeiro de 2003, reportagens na imprensa trouxeram boas notícias para os orangotangos. Segundo a revista Science, eles são “quase humanos”. Alguns deles “usam guardanapos quando comem” e “beijam-se para dar boa noite”. Alguns “usam folhas com luvas enquanto manuseiam vegetação espinhenta” (...). Ainda mais surpreendente, eles desenvolvem uma cultura: como as sociedades humanas, os grupos de orangotangos desenvolvem modos distintos de se comportar uns com os outros. Os seus jogos variam de lugar para lugar. Em Bornéu, brincam derrubando árvores mortas, que cavalgam enquanto caem e abandonam pouco antes do impacto. Esse jogo, entretanto, é desconhecido dos orangotangos de Sumatra. (p. 59)


Além do embasamento científico para questionar nossa noção “tradicional” de humanidade, o professor Armesto, fundamentado em pesquisas arqueológicas, mostra como é sustentável a idéia de que em períodos ou sociedades pré-agrícolas, onde os humanos praticamente não tinham controle sobre a natureza, nossa espécie se percebia como uma entre tantas e nada mais que isso. Fósseis de humanos enterrados ao lado de animais, ou de animais enterrados com o que seriam adornos de reverência, sugeririam uma noção de igualdade entre espécies, ainda mais quando éramos tão frágeis frente às garras, presas e velocidade dos felinos, por exemplo.
Essa percepção dos humanos como pertencentes à mesma “esfera” de outras espécies teria perpassado as sociedades pré-agrícolas, tanto é assim que observamos o culto aos animais ou o antropozoomorfismo em sociedades como a egípcia, por exemplo. O caráter histórico dessa noção que temos de nós mesmo em relação aos outros animais é fundamentado por Felipe Fernández-Armesto de uma forma bastante interessante. Além dos estudos arqueológicos, o historiador traz uma série de documentos mostrando como animais eram julgados com os mesmos critérios que se julgariam os humanos. Gafanhotos acusados de provocarem fome, cães julgados por assassinato na Europa Medieval, enfim, uma série de documentos evidenciariam como essa noção antropocentrista é definida no tempo e no espaço e mesmo quando foi hegemônica, não permaneceu como única.
Em tempos onde nosso pseudo-poder sobre a natureza atinge proporções titânicas; em um período em que temos a capacidade técnica para eliminar boa parte da vida sobre a Terra; em dias que nos comportamos como se todos os recursos naturais e todas as espécies sobre o planeta estivessem aqui com a única finalidade de nos servir...As reflexões propostas pelo professor Armesto se tornam de grande valor. A permanência de nossa civilização e talvez até de nossa espécie, dependem inexoravelmente das relações que teremos com toda forma de vida e não vida no planeta, de nossa percepção sobre nós mesmos nessa “pequena bola de terra molhada flutuando no espaço”.

Saymon

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Imprensa e democracia


Duas décadas de ditadura militar deixaram marcas indeléveis na sociedade brasileira e mesmo com a democracia formal já restabelecida há mais de vinte anos, os traumas da censura e das restrições às liberdades civis ainda assombram as gerações que viveram naqueles idos. Bom mesmo que assombrem, e que as novas gerações tomem em suas mãos a responsabilidade de nunca mais permitirem algo parecido como o regime instaurado em 1964. A liberdade, a crítica e a democracia são condições inclusive para pensarmos o socialismo no século XXI.
Porém, esse trauma causado pela noite que caiu sobre o Brasil após a deposição do presidente João Goulart, muitas vezes serve encobrir com o manto do “democratismo” grupos e práticas nada democráticos. Em nossos dias, qualquer referência que se faça no sentido de regulamentar ou mesmo responsabilizar setores da imprensa por suas práticas, soa como verdadeira heresia e prontamente os cavaleiros da pseudo-liberdade desembainham suas espadas.
A imprensa deve sim ser livre e desfrutar de toda liberdade, entretanto, como qualquer órgão público ou privado, precisa responder por suas práticas, se responsabilizar perante a sociedade, uma vez que está inserida até as entranhas nessa, não pairando angelicalmente e imparcialmente sobre o resto dos simples mortais. Tendo em conta, sobretudo, os grandes conglomerados de televisão, jornal, rádio e revista, temos que ponderar que tais veículos são empresas privadas, nas mãos de grupos sociais bastante específicos da elite brasileira e que dessa forma, muitas vezes possuem interesses que nada tem em comum com democracia ou justiça social. Essa gente tem interesse próprio e a preservação de seu capital e de sua influência raramente não está à frente do bem estar da sociedade.
Nesse sentido, a falta de fiscalização e de responsabilização dessas empresas de comunicação de massa, isso sim, pode representar riscos à democracia. Golpes são gestados nas páginas de revistas ou nas bancadas onde se diz “boa noite”. Governos são derrubados, planos econômicos boicotados, a “boataria” dissemina o pânico, a mentira e a calúnia denigrem biografias respeitáveis e as figuras mais deploráveis são colocadas como paladinos da virtude. A democracia é corroída, apodrece. A ilusão da falsa neutralidade obscurece os obscuros interesses de classe do “capitalista midiático”, ligado umbilicalmente aos setores mais reacionários e egoístas da sociedade brasileira.
Em uma sociedade com um judiciário independente, não atrelado ao poder executivo, parece extremamente salutar que a imprensa não fique acima do bem e do mal, como se fosse o anjo a decidir que vai pra tal ou qual barca. Só dessa forma podemos evitar que ela paire como uma guilhotina sobre a democracia.

Saymon de Oliveira Justo