terça-feira, 7 de agosto de 2012

Vencedores e perdedores do Câmbrico: anatomia e anomalia animal. Paródia Paleozóica das Olimpíadas de Londres. Agosto de 2012.


Acima, Colúmbia Britânica, Montanhas Rochosas Canadenses. Xisto de Burgess.
  Bem antes dos Tiranossauros se tornarem os seres dominantes na paisagem da fauna terrestre jurássica, vivendo no topo da cadeia alimentar, existiu no planeta uma fauna fascinante, exótica e diversificada. Ela é chamada hoje de “fauna câmbrica” pelos paleontologistas. Esta maravilha preservada em fóssil surgiu em um evento conhecido como “explosão câmbrica” (a cerca de 570milhões de anos atrás), o que em termos mais simples significa que a evolução operou intensamente na anatomia e funcionalidade dos animais, fitoplânctons e calcimicróbios[1] então existentes, produzindo repentinamente animais de formato, hábitos alimentares e reprodutivos radicalmente estranhos para os padrões de hoje. 
   É claro que eles não surgiram espontaneamente. Havia, presume-se, uma fauna prévia que serviu de ponto de partida para o surpreendente “boom” câmbrico. Contudo, como admitiu o próprio Darwin, as rochas sedimentares que porventura possam abrigar os fósseis destes antiquíssimos animais, preceptores das espécies câmbricas, são de difícil localização, podendo muitas delas estar neste momento no fundo dos oceanos. Isto não impede, é claro, que alguns “xistos"[2], ou depósitos de sedimentação contendo estes fósseis possam ser descobertos nas atuais placas continentais a qualquer momento. O estranho é que eles ainda não foram encontrados pela comunidade científica. Este problema gerou certo desconforto teórico à Darwin em seu tempo, e ainda gera expectativas nos geólogos e paleontólogos atuais. De fato, como “provar” a ascendência da fauna câmbrica dentro da teoria evolucionista se não se encontram registros fósseis que sustentem a teorização evolucionária? Estava aberta uma brecha para os defensores da“criação espontânea”!
Abaixo, representação gráfica da fauna câmbrica.
   Do mesmo modo que surgiu, em um período relativamente curto em termos geológicos (termos estes que se referem a idade dos afloramentos rochosos terrestres), a fauna câmbrica foi extinta de modo fulminante, restando após a mortandade apenas 4% das espécies anteriormente existentes. 
   Os registros fósseis deste período de extrema experimentação, diversidade anatômica e funcional da natureza animal são conhecidos deste o início do século XIX, e seu representante mais conhecido é o muito estudado “trilobita”.

Acima, Trilobita fóssil.
    Entretanto, o próprio trilobita é considerado membro de uma espécie de geração mais nova, pois esta surgiu no final da era câmbrica, pouco antes da massiva extinção ocorrida no início do período “ordovícico”(aproximadamente 520 milhões de anos no passado). Os trilobitas foram bem-sucedidos em sua era e seus fósseis são encontrados por quase toda a superfície terrestre, em sua respectiva camada geológica, sinal de que ele prosperou adaptativamente e se difundiu pelos oceanos do planeta de então. Mas antes do surgimento dos trilobitas, estranhos animais dominavam os mares e oceanos. Os animais da fauna câmbrica.
Abaixo, fauna e flora câmbricas.

    A jazida contendo este tesouro paleontológico foi descoberta pelo geólogo norte-americano Charles Doolitle Walcott em 1909, mas só veio e ser estudada, compreendida e avaliada a partir da década de 70 do século XX, quando os paleontólogos britânicos Harry Whittington, Simon Conway Morris e Derek Briggs resolveram abordar com métodos e aparelhos mais modernos os tesouros fósseis de Walcott, guardados no Smithsonian Institution, USA, onde Walcott era administrador.          O reestudo do material sob novas condições de análise trouxe a tona perturbadoras conclusões, conclusões estas que afetaram a própria ortodoxia darwiniana. Foi como se os famosos “Manuscritos do Mar Morto” fossem todos liberados para publicação, trazendo à tona informações sobre a primitiva Igreja Cristã que contradizem a ortodoxia católica contemporânea.   Vejamos alguns dos “alienígenas” aquáticos encontrados por Walcott nas Montanhas Rochosas Canadenses. Devemos nos lembrar que nesta era remota a superfície terrestre estava desabitada.

Marella: animal abundante no Xisto de Burgess. Possuía um escudo cefálico com quatro espinhos voltados para trás, cerdas com penugem, patas locomotoras e compridas antenas. Não foram encontrados olhos neste animal. A principio foi relacionado como um antepassado dos trilobitas. Depois da revisão de Whittington, esta hipótese foi descartada. A simples “funcionalidade”, os hábitos alimentares e de locomoção não foram suficientes para estabelecer definitivamente o parentesco. Acabou sendo reclassificado como um filo independente de artrópode. Um filo animal isolado. Mas esta bela espécie não sobreviveu ao extermínio ordovícico-silúrico.
 Abaixo, desenho de um exemplar do Marella.



Yohoia: gênero animal comum na jazida fóssil de Burgess. Possuía um par de olhos e também um par de apêndices preênseis em frente à cabeça, sinal de que era um predador e/ou necrófago, e não um depositívoro[3] como o Marella. Nadava e não possuía patas ou membros locomotores, apenas alguns apêndices articulados logo atrás da carapaça. Apesar de semelhante em alguns aspectos aos modernos artrópodes, tinha características que o distinguíam claramente, como a citada carapaça cefálica bivalve, e as pinças dianteiras. Acabou classificado como outro “filo” à parte. Outra supressa de Burgess. Sucumbiu na grande extinção do ordovícico.
Abaixo, representação pictórica computadorizada de um Yohoia.



Opabinia: animal relativamente raro na jazida fóssil de Burgess. Pouco maior que um dedo anular adulto. Possuía cinco olhos e uma “tromba” que terminava em uma pinça dentada. Predador eficiente, o Opabinia nadava à captura de presas com suas barbatanas laterais e caudais. Sua primeira representação artística causou um riso de espanto e perplexidade no grupo de especialistas reunidos em simpósio paleontológico. Era estranho demais..., um quase alienígena. Hoje é tido como uma das mais interessantes criaturas que já habitaram o planeta. Foi extinto na Grande Dizimação Silúrica.
 Abaixo, o Opabinia. 
Hallucigenia:  um dos mais curiosos animais do câmbrico. Sua singularidade anatômica é única. Simon Conway Morris, que estudou o fóssil e também o “batizou”, diz ter escolhido o nome em virtude de seu aspecto bizarro e onírico. Em verdade, não se sabe ao certo onde é a frente ou o traseiro do animal, seu lado de cima ou de baixo... Mesmo os especialistas se atrapalham ao tentar reconstruir seus hábitos alimentares e de locomoção. A julgar pelas estruturas funcionais encontradas em alguns animais marinhos de hoje, o Hallucigenia viveria conforme se observa na imagem abaixo: cego e encravado por seus espinhos no fundo de pântanos, lagoas e lagunas rasas, movendo-se muito lentamente já que haviam articulações que ligavam os espinhos ao tronco do animal. Há uma “cabeça” em um dos lados, ou melhor, um membro cefálico, sem olhos, antenas ou boca(???). Possuía sete tentáculos relacionados aos sete pares de pernas-espinhos. Ao final de um dos lados o tronco se afunilava, dando origem a algo que se supõe ser uma abertura digestiva... Os tentáculos possuíam suas pontas em formato de pinças, o que pode indicar que serviam para capturar detritos suspensos nas aguas lodosas que habitava. Em resumo, o animal é tão esquisito que não se pode descartar a hipótese de que ele era, na verdade, “parte” de um animal maior... Equívocos taxonômicos semelhantes acontecem nos estudos paleontológicos, o que corrobora a dificuldade que enfrentam os paleontólogos ao se defrontarem com animais do período câmbrico. Também foi extinto na Mortandade Silúrica-Ordovícica.
Abaixo, representações do Hallucigenia

Aysheaia: animal de corpo cilíndrico que possuía dez pares de membros com os quais de fixava na casca de esponjas e pepinos do mar. Sua boca possuía um conjunto de "brocas perfuratrizes" por onde se pregava e sugava a seiva das suas plantas e organismos prediletos. Isto o caracteriza como um parasita. Era cego. Não foi extinto na Grande Dizimação do final do Câmbrico, o que significa que dele derivaram alguns dos espécimes funcional e anatomicamente semelhantes da atualidade.
Abaixo, representação computadoriza de um exemplar do Aysheaia.
Banffia: só recentemente esta espécie foi reexaminada e classificada pelos paleontólogos. Até então seus fósseis, também advindos do Xisto Argiloso de Burgess, na Columbia Britânica Canadense, estavam engavetados no laboratório de Walcott, no Smithsonian Institution de Washington, DC, Estados Unidos. Possuía corpo mole e espiralado, o que lhe permitia nadar de forma desengonçada. Sua extremidade cefálica estava encoberta por uma carapaça mineralizada, de onde surgia a abertura de uma boca semi-circular cercada por apêndices sensoriais em forma de antenas que se estendiam por baixo do corpo do animal. Não se conhecem olhos nesta estranha espécie. 
Abaixo, duas Banffias "vistas" por cima.
Wiwaxia: pequena criatura oval, achatada e cega, com o corpo inteiramente recoberto por placas escamosas, semelhantes a unhas, talvez do mesmo material. Espinhos dorsais eram direcionados para cima, levemente curvados para trás. Sua superfície ventral era pelada, sem escamas, e à frente do animal se encontrava o orifício bucal, na verdade um par de mandíbulas com dentes em forma de ponta de flecha, muito afiados. A julgar pela anatomia, era um necrófago detritívoro, que recolhia restos orgânicos do fundo das poças, lagos e mares por onde se arrastava. Suas sete fiadas de espinhos dorsais serviam de defesa contra predadores; os espinhos eram tão afiados e resistentes que se conservaram nos fósseis até os dias atuais. Taxonomicamente inclassificável, não está relacionado a nenhum filo-genealógico conhecido; nem do presente, nem do passado. Extinto na “Dizimação Silúrica”. Uma singularidade animal. 
Abaixo, representação computadorizada e desenho de uma Wiwaxia.
Anomalocaris: maior animal do Câmbrico, talvez o maior predador também. O nome significa “camarão anômalo”, e foi cunhado em um período pré-Burgess, já que partes do animal haviam sido descobertas em meados do século XIX. Foi remontado como um quebra-cabeça, por partes, até que finalmente fósseis completos foram encontrados nas camadas fósseis de Burgess. Possuía quase 1 metro de comprimento na fase adulta, com dois enormes apêndices em forma de garras dentadas preênseis que saiam da superfície inferior da carapaça cefálica. Possuía um par de grandes olhos sobre pedúnculos, e nadava impulsionado por possantes barbatanas ventrais lateralizadas guiado por "lemes" traseiros. Sua boca circular era repleta de dentes afiados que seguiam para o interior do tubo digestivo, triturando suas presas em pequenos fragmentos digeríveis. Nadava, acredita-se, de modo semelhante as nossas raias, ou arraias, ondulando as barbatanas laterais. Seu escudo cefálico era resistente como uma rocha. Espécie dizimada no final do período câmbrico durante a Grande Extinção Silúrica.
Abaixo, duas representações do Anomalocaris.

    Das espécies citadas acima, apenas o Aysheaia sobreviveu à Grande Extinção Silúrica. E o intrigante é que este animal parasita pouco tinha de excepcional, com exceção do fato de ser um parasito vivendo às custas de hospedeiros situados no estrato primário da cadeia alimentar. Como se alimentava da seiva de vegetais aquáticos de lagunas rasas e da linfa de animais, foi poupado da dizimação que exterminou quase toda a cadeia alimentar acima dele. Sua situação “modesta” na ecologia do mundo câmbrico lhe poupou da extinção. Quem apostaria “nele”??

Aysheaia, El Vencedor!

    O “acaso” também poupou algumas outras poucas espécies, das quais nossa moderna fauna, inclusive o Homo Sapiens, descende.

Pikaia Gracilens, outra campeã!!


    Este elegante animal acima é o "Pikaia Gracilens", e foi batizado por Charles D. Walcott em homenagem ao monte onde seu fóssil foi primeiramente encontrado, o Monte Pika, também nas Montanhas Rochosas Canadenses. O interessante sobre este animal simples?! Ele também sobreviveu à Grande Dizimação Câmbrica-Silúrica. Há duas décadas descobriu-se que este animal é o primeiro "cordado" registrado na fauna terrestre. Os cordados são um filo animal que apresentam a notocorda espinhal, um tubo nervoso dorsal e fendas branquiais, o que significa que ele é o ancestral de "todos" os peixes, anfíbios, répteis, aves e, posteriormente, mamíferos. Se este pequenino nadador do câmbrico não tivesse sobrevivido à Grande Extinção Silúrica, nada do que se conhece hoje sobre este planeta e sua biosfera poderia ser descrito, observado ou analisado por seres terrestres. Não haveria auto-consciência. O Homo Sapiens simplesmente não existiria caso o Pikaia não houvesse sobrevivido e evoluído em direção aos vertebrados...  
   Qual destino aguarda nossa soberba espécie? Somos os causadores de uma nova onda de dizimação? Já demos ignição ao processo que nos devorará, já que estamos no topo da cadeia alimentar? Nossas tão indulgentemente aclamadas qualidades intelectuais nos salvarão do extermínio? Quem viver verá...! Rsrsrsrsr...


Dúdis Tozinsky Cobain.

Bibliografia:
Darwin, C. A Origem das Espécies. Martin Claret, São Paulo: 2004.
Dawkins, R. O Gene egoísta. Editora Itatiaia, Belo Horizonte: 2001.
Dawkins, R. O Relojoeiro Cego. Cia. das Letras, São Paulo: 2009. 
Dawkins, R. A Grande História da Evolução. Cia. Das Letras, São Paulo: 2009.
Dicionário de Ciências: Biologia e Geologia. Porto Editora, Portugal:2001.
Gould, S, J. A Vida é Bela. Gradiva. Portugal: 1995.
Gould, S, J. Viva o Brontossauro. Cia. das Letras. São Paulo: 1992.
Leakey, R. A Origem da Espécie Humana. Rocco, Rio de Janeiro: 1997.
Luca Cavalli-Sforza. Genes, Povos e Línguas. Cia. Das Letras, São Paulo: 2003.
Montagu, A. Homo Sapiens. Guadiana Publicaciones, Madri: 1970.
Morris, D. O Macaco Nu. Editora Record, Rio de Janeiro: 1967.







[3] Os depositívoros extraem pequenas partículas alimentares do sedimento acumulado no solo subaquático.





[1] Micróbios calcificados.
[2] Rochas sedimentares ou metamórficas formadas e compostas por camadas de sedimentos, em geral marinhos.