terça-feira, 18 de janeiro de 2011

SIMULACROS, IRRITAÇÕES E MUITO, MUITO SANGUE INOCENTE

Deixo de lado, apenas momentaneamente, as questões cosmológicas que tanto nos incentivam para, agora, debruçar-me sobre um tema que em mim está causando bastante alvoroço. E prefiro agora me utilizar da primeira pessoa para expressar esse alvoroço.
Trata-se de uma situação por onde se pode medir a ignorância alheia (falo sem rodeios) e também as limitações intelectuais de muitas pessoas com quem me meti a dialogar sobre o tema.
Acho importante tecer essas linhas iniciais porque estou realmente indignado com a “pequenez” do pensamento do brasileiro médio. Estou realmente indignado com essa situação. É daí que extraio palavras que talvez sejam até mesmo mal-educadas aos olhares de alguns.
O tema é a descriminalização do aborto e as confusões e peraltices por onde vagam grande parte das opiniões que muitas vezes nem mesmo chegam a arranhar o assunto.
Seguindo a acidez das primeiras linhas, só posso acreditar em uma de duas vias possíveis, ambas extremas: ou eu sou muito esclarecido ou algumas pessoas com quem converso são mesmo muito, mas muito ignorantes.
Não pensem vós, parcos leitores que tenho, tratar-se de mera manifestação de minha arrogância e orgulho, mas, a bem da verdade, o tema já está me irritando seriamente, posto que não há muitas pessoas com quem converso capazes de tecer suas opiniões sem confundir descriminalização do aborto com o aborto propriamente dito.
Bem, sem mais delongas, passemos a outra margem do rio.
Falar sobre a descriminalização do aborto parece até mesmo clichê, principalmente após a campanha eleitoral de 2010, que explorou o tema de forma tão chula e desmedida como foi. Mas, neste colóquio, preferi não apenas versar sobre minhas argumentações a favor ou contra esse tema, mas também resolvi debruçar-me sobre a falta de lucidez de algumas pessoas que insistem em viver na obscuridade mantida por preconceitos e aspectos religiosos castradores e limitadores.
Como religioso que sou, fico ainda mais indignado em saber que o pensamento religioso de alguns serve tão somente ao propósito de mantê-los no comodismo da “opinião formada pela imprensa” ou da “ideologia”, a mesma cantada por Cazuza.
Primeiramente, é necessário dizer mais uma vez que ser a favor da descriminalização do aborto não é o mesmo que ser a favor do aborto. Parece lógica essa distinção, mas ela se faz necessária diante da cegueira social que rodeia grande parte dos desafortunados das letras que povoam o solo brasileiro.
Bem, após essa distinção inicial, remeto meus parcos leitores ao Código Penal Brasileiro, mais precisamente aos seus artigos 124, 125,126,127 e 128, os quais regulam o tema.
Os quatro primeiros artigos não nos interessam propriamente, pois tratam de especificar as modalidades da prática do aborto, seja praticado pela própria gestante ou provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante.
Já os incisos I e II do art. 128, CP, trazem dois permissivos legais que deixam de punir a prática do aborto quando praticado por médico e apenas como meio último para salvar a vida da gestante ou ainda caso a gravidez seja decorrente de estupro.
Os permissivos legais em questão, por si só, já demonstram que sua ocorrência só se dará em situações extremas, onde a moralidade da prática ou não desse ato caberá tão somente à mulher que sofre tais vicissitudes.
Portanto, tendo em vista os permissivos legais acima, pode-se inferir que em certas circunstâncias, o aborto já é descriminalizado, ou melhor, sua prática não contém antijuridicidade, ou seja, não é ilegal, fato que impede a punição pelo Estado caso seja realizado.
Contudo, praticar ou não o aborto sempre coube, em última instância, à mulher que o realiza. Dados oficiais do Ministério da Saúde estimam que ocorram até 1,25 milhão de abortos por ano no Brasil[1], mas apenas um número ínfimo de mulheres, para não dizer irrisório, chegaram a ser devidamente processadas, julgadas e condenadas pela prática do aborto provocado. Esse dado revela o óbvio, ou seja, que não há aplicação efetiva da legislação vigente que regula o tema, até mesmo porque os magistrados que acabam por julgar casos como estes sabem que em nada adiantará condenar à prisão uma mulher pobre, sem qualquer instrução e muitas vezes arrimo de sua família tão somente porque ela tenha tomado uma decisão tão extrema e que diz respeito apenas à sua própria privacidade.
O modelo legislativo que impera no Brasil é falho e trata o tema nivelando-o sem se preocupar com questões sociais mais profundas. Da forma como está, a legislação claramente favorece os mais abastados economicamente e condena as mulheres de extratos sociais mais baixos ao ostracismo de seu próprio corpo e as privam da dignidade trazida pelo Estado Democrático de Direito.
Quando permitimos que a legislação atual criminalize a prática do aborto provocado, somos coniventes com uma pena social imposta a todas as mulheres menos favorecidas, que necessitam adotar métodos espúrios caso desejem abortar, tais como o uso de medicamentos proibidos, chás de ervas venenosas, pancadas em seu próprio ventre ou até mesmo introduzindo agulhas de tricô em sua cavidade vaginal.
Contudo, por outro lado, a legislação atual inocenta as mulheres mais ricas, que podem pagar por clínicas esterilizadas ou por viagens ao exterior para abortarem em melhores condições de saúde e higiene.
Dessa forma, quando a maioria do povo brasileiro vota pela não descriminalização do aborto, está na verdade tomando uma decisão da qual não compreendem suas reais extensões sociais e cívicas.
Como se não bastasse, as estatísticas do mundo todo revelam que os países que optaram pela descriminalização, tiveram considerável redução no número de abortos praticados.
Essa situação se dá, obviamente, porque as mulheres passam a ter tratamento médico e psicológico fornecido institucionalmente pelo Estado. E muitas vezes, após consultas com profissionais como médicos, psicólogos e assistentes sociais, mudam de ideia e resolvem dar à luz seus bebês.
Por outro lado, a forma grotesca e arcaica, obscurecida e moralista que ainda adotamos condena a maior parte das mulheres que abortam aos terrores de práticas médicas não convencionais, bem como diminuem consideravelmente as chances de vários abortos serem evitados.
Um fato é certo: sendo ou não crime, o aborto ocorre, como sempre ocorreu. E não é um modelo legislativo instituído que impedirá ou diminuirá os casos de aborto. Trata-se de uma questão de foro íntimo, dependente apenas da própria visão social, cultural e religiosa da mulher que opta ou não pelo aborto.
Dessa forma, ao sustentar-se em argumentos de ordem religiosa para defender uma determinada posição acerca de um tema tão subjetivo como este, o indivíduo que assim age, no mínimo, desrespeita seu próximo e invade sua privacidade ao condená-lo a viver sob o jugo de concepções religiosas que muitas vezes não deseja adotar. É um verdadeiro desrespeito à liberdade democrática tão cara à Constituição de 1988, a qual defende a livre expressão do pensamento e a liberdade de credo.
É bem verdade que alguns “lobos” calculistas poderão dizer nesse ponto que a Constituição também preserva o Direito à Vida e que, portanto, não poderia jamais coadunar-se com a descriminalização do aborto.
A estes oportunistas de visão rasa, digo apenas que atentem para a análise estatística feita nos países contemplados com a descriminalização. Ali poderão ver, como dito anteriormente, que o Estado, ao progredir nesse caminho, tratou de preservar mais vidas que outros governos ainda mergulhados na ignorância moralista da vias tradicionais.
Finalizo remetendo meus leitores ao mito de Sísifo, personagem da mitologia grega que foi condenado por Zeus à pena de repetir por toda a eternidade a mesma tarefa de empurrar uma pedra ao topo de um monte apenas para vê-la rolar morro abaixo.
Nossas mulheres não podem se submeter à mesma pena, vendo suas vidas transformarem-se em meras rotinas estabelecidas por “autoridades” nebulosas e que só fazem privá-las da liberdade e dignidade de seus próprios corpos.

Rafinha Capa Blanca
18/01/2011


[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Aborto_no_Brasil

Um comentário:

  1. Amigo Rafinha

    Foi com satisfação que li seu texto sobre a descriminalização do aborto. Primeiramente por se tratar de um tema controverso e de abrangência nacional, o que possibilita um maior número de pessoas participarem do debate. Em segundo, por abordá-lo de uma perspectiva racional e não impregnada de preconceitos religiosos. Por fim, pela maneira clara como expôs seus argumentos, fazendo a necessária separação entre “ser a favor ou não a descriminalização do aborto” e ser “a favor ou contra o aborto em si”. Alias, penso que tal distinção talvez seja a grande contribuição de seu texto, uma vez que reina a confusão no debate sobre o tema.
    Concordo com a maioria dos pontos levantados. Acrescento ainda mais um do ponto de vista econômico. Com a descriminalização do aborto o SUS provavelmente teria menos gastos, uma vez que é muito mais caro para o sistema cuidar das conseqüências de um aborto clandestino do que fazê-lo no próprio sistema (existem dados sobre isso).
    Uma questão, porém, ainda me causa desconforto. A mulher, ao abortar, não estaria tomando uma decisão que diz respeito apenas a ela, uma vez que teoricamente o feto pode ser considerado como um outro indivíduo. Dessa forma, o Estado estaria não apenas legalizando, mas também promovendo, a morte de um outro indivíduo.
    Nesse caminho, acredito que chegamos a um ponto importante, que deve ser abordado do ponto de vista científico e não religioso. Existe um consenso sobre o limite entre a vida e a “não vida”? É possível distinguirmos, com precisão, quando a união do material genético masculino e feminino forma um outro indivíduo? Em qual mês de gestação podemos considerar a existência de um outro sujeito, detentor de direitos sociais, entre eles a vida?
    Por fim, e com toda minha desconfiança marxista, penso nas mulheres trabalhadoras, seja doméstica, operária, vendedora, enfim, nas mulheres das classes mais pobres. Com a descriminalização do aborto, não sofreriam elas uma “pressão” para abortarem? Digo isso em razão dos meses de licença maternidade concedido pela legislação trabalhista. O empresário, no intuito de não perder sua funcionária, não “forçaria a barra” no sentido do aborto, privando-a do direito a maternidade?
    Só mais uma questão, os países que você citou, quais são? Pois temos que ter em mente que medidas adotadas na Holanda, por exemplo, não teriam os mesmos resultados no Brasil. O caso da Progressão Continuada constitui um bom exemplo disso.
    Enfim, levantei questões que ainda me incomodam no debate sobre a descriminalização do aborto. Confesso que não li nenhum projeto de lei sobre o tema ainda, e provavelmente muito de minhas inquietações são mais fruto da ignorância sobre o estado do debate.
    Por ser um tema de interesse abrangente, proponho aos colegas do blog entrarem no debate. Mais uma vez, parabéns pela forma como colocou a questão.
    SAIMOV

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