segunda-feira, 23 de maio de 2011

DUAS VISÕES?


“Caminante, no hay camino, se hace camino al caminar”
_António Machado, poeta sevilhano

Dizer que a visão científica sobrepõe-se à religiosa ou vice-versa é um tipo de pensamento há muito estagnado.
O Homem e seus dilemas não ganham nada com essa sobreposição preconceituosa de valores sobre essas duas visões de se conceber o universo e nossa existência nele.
É fato que a religião queimou cientistas e negou as iluminuras dos métodos científicos matematicamente explicáveis. Mas também é fato que em nome da ciência, p. ex., o Direito, em certo tempo, transformou-se em um quase sistema computacional capaz de validar holocaustos inteiros ao sabor da pertinência lógica ao intocável “Ordenamento Jurídico”.
Ambas as visões, científica ou religiosa, não são mais que fruto dos anseios humanos. Ambas não são mais que o próprio homem e sua busca insaciável pela “verdade”.
Certa feita, D. Paulo Evaristo Arns, ex-arcebispo metropolitano de São Paulo, disse: “A busca pela verdade distingue o Homem, nossa paixão por ela nos dignifica”.
De fato, acredito que D. Paulo não errou. Se do contrário fosse, ou seja, se não nos preocupássemos com a verdade (tomada aqui subjetivamente), onde residiria nossa dignidade? Onde estaria o mínimo de respeito por nossa própria existência, como seres racionais, se não há qualquer preocupação sobre serem verdadeiros os caminhos que ousamos trilhar enquanto existimos?
Essa preocupação é subjetiva. A verdade, acredito, não existe de forma objetiva, mas, sim, existe subjetivamente e de forma pulsante no âmago de cada um e faz parte de nossa existência pelo menos lançarmo-nos ao desafio de questionar o universo e seus mistérios tentando sondá-la.
Religião e Ciência não são mais que facetas dessa busca incansável do Homem atrás de sua verdade, de sua própria dignidade.
Contudo, é fato que o Homem criou e destruiu vários mundos e os suportes filosóficos que os sustentavam. Assim, caso seja instaurada uma celeuma envolvendo religião e ciência, esta deve estar atualizada com o mundo em que vivemos hoje. Se essa atualização não for feita, corremos o risco de julgar a religião pelos tribunais inquisitórios da Idade Média e a ciência pelas experiências sórdidas de Josef Mengele.
É engraçado e até mesmo irônico dizer que nos dias de hoje à religião é dado um pensamento exclusivamente mitológico, metafísico, insondável e atemorizador, enquanto que à ciência enrijeçam-se o argumento válido, matemático, racional, fruto da experimentação coerente ao uso de métodos e controles capazes de garantir certa dose de verificabilidade.
Digo engraçado, porque a ciência necessita tanto de dogmas quanto a religião. Ou não é verdade que o cientificismo do século XIX não passou de um mito onde a ciência era a protagonista capaz de explicar com perfeição todas as questões humanas?
Da mesma forma, explicar o pensamento religioso apenas pelos dogmas da “revelação” é muito pouco para delinear toda a idiossincrasia que reina entre suas interpenetrações com a política, economia, sociologia, direito, história, diplomacia, filosofia, psicologia, medicina etc.
Não é possível, nem crível, afirmar que a ciência é capaz de explicar TODOS os anseios humanos. Ela pode até tecer considerações sobre os seus limites biológicos e a morte que fatalmente se avizinha, contudo, jamais poderá AFIRMAR o que ocorre após a morte (se algo ocorrer).
Mas alguns podem dizer que a vantagem da ciência sobre a religião reside em sua autopoiese, em sua capacidade de retificação e re-elaboração de suas próprias verdades, enquanto que a religião permanece em estado inercial desde sempre, mantendo perenes os mesmos dogmas de outrora.
Nada mais preconceituoso pensar dessa forma. Cada um desses dois sistemas de raciocínio tem suas próprias teleologias e idiossincrasias. A ciência se reinventa a todo instante porque é da natureza do próprio Homem buscar constantemente o aperfeiçoamento intelectual e estético de si mesmo (ressalvadas as questões econômicas que delimitam o tema). Da mesma forma, a religião mantém perenes seus dogmas e seus sistemas porque também é da natureza humana manter perenes os mesmos questionamentos que sempre fez sobre sua própria existência, a morte, Deus, de onde veio, por que veio e para onde irá. Não é necessário reinventar dogmas e preceitos religiosos para lidar com questões que desde sempre nos afligem da mesma forma, basta ter ou não ter fé nesta ou naquela religião.
Porém, a questão não é tão simples assim. Religião e Ciência foram tomadas aqui como sistemas livres e que trabalham sempre em favor do Homem. E sabemos que as estruturas não são tão maravilhosas e despretensiosas assim. Invista milhões de dólares em uma universidade ou um grande centro tecnológico e terá dos seus cientistas a verdade científica que melhor lhe convier. Você poderá até mesmo descobrir ironicamente que fumar faz BEM à saúde. Da mesma forma, deixe de examinar criticamente sua fé e verá como é fácil partir para a alienação e misticismo desenfreado.
Em resumo, religião e ciência, a meu ver, explicam cada uma o seu universo de verdades, mas são tão imperfeitas quanto os seus criadores. Resta ao homem de bom senso saber usar o que é bom de ambas. 

Rafael Guerreiro

3 comentários:

  1. Camarada Rafinha
    Gostei do seu texto, está bem escrito e com uma argumentação clara. É interessante quando argumenta que ciência e religião não precisam ser entendidas como dois polos opostos (um bom e outro ruim- maniqueísmo). Realmente a ciência, em sí, pode servir á vários fins, tanto á bomba atômica quanto á cura do câncer. No meu entender, o "x" da questão está na correlação de forças sociais, que determinam o uso que se faz do conhecimento cienífico.
    Quanto a crença íntima das pessoas em "Deus" ou "Deuses", particularmente não tenho nada contra. Muitas pessoas conseguem conciliar tranquilamente fé e religião, tanto em suas conciências como em suas práticas cotidianas.
    Agora, discordo de você em um ponto, acredito que não podemos apagar o passado, e devemos entender a religião em sua construção histórica. Não é possível esquecer a inquisição, a fogueira, o apoio ideológico a escravidão, enfim. Não foram manifestações casuais, mas sim inerentes a uma forma de pensar que geralmente coloca o "outro" como desprovido da verdade e, portanto, objeto dos detentores da mesma.
    Atualmente vemos como, em última instância, a religião condena o homossexualismo. Por mais que alguns representantes religiosos digam que devemos tolerar "o diferente", a religião renega a ciência (que mostra que a homossexualidade não é uma doença) e coloca nossos irmãos são-paulinos como pecadores.
    A maioria das pessoas convivem bem com as duas por não leva-las ás últimas consequências e ao contrário do que disse, penso que em determinadas ocasiões elas (ciência e religião) buscam explicar o mesmo universo e aí, é preciso escolher uma ou outra.
    Mas enfim, o que mais me incomoda na religião, e especificamenre nos fanáticos religiosos, é a hipocrisia e o ato de negarem completamente a razão.
    Não entendo como alguém pode deixar uma pessoa morrer por acreditar que vai precisar do seu rim ou coração na "vida após a morte", mesmo podendo observar que esses orgão são comidos pelos vermes.
    Não acho produtivo querer ensinar que sexo e casamento devem estar incondicionalmente ligados. O ato sexual obedece a impulsos naturais e existe desde os primórdios, enquanto a instituição casamento é facilmente datada no espaço e tempo.
    Por fim, minha maior aversão á religião Vem de observações e interações do dia-dia. Percebo que quanto mais "religiosa" a pessoa é (ligada aos ensinamentos da instutuição), mais se julga superior e maior sua intolerância com quem pensa e vive de forma diferente.
    O pior é que a prática queligiosa (no caso das religiões cristãs), negam suas próprias raízes.
    Enfim, acho que sou cristão demais para ter alguma religião.

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  2. Caro Saymon. Primeiramente, em meu texto eu não me referi especificamente à Igreja Católica ou ao Cristianismo.
    Esse é o problema das argumentações que encontro por aqui. Há uma facilidade muito grande em confundir religião lato sensu com catolicismo (o que já mostra que o debate chega viciado e tendencioso).
    Meu texto se propôs a versar sobre o fenômeno religioso e o científico de forma ampla.
    Sobre a questão da intolerância, eu sinceramente não enxergo assim. Qualquer religião tem o direito de expressar sua forma de compreender a homossexualidade, bem como qualquer outro assunto. Isso é liberdade de expressão, materializada na liberdade de culto. Não se trata de fazer apologia CONTRA os homossexuais, isso seria homofobia, mas as igrejas podem e devem falar livremente sobre o que acreditam ser "certo" e "errado", afinal, esse é o papel delas, oras bolas! Esse direito que elas têm é o mesmo que temos agora de nos expressarmos livremente acerca de nossas ideias e conjecturas. REPITO: NINGUÉM ESTÁ FAZENDO APOLOGIA À HOMOFOBIA, MAS SIM À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE CULTO!
    Outra coisa: vejo que vc confunde a assim chamada "religiosidade natural" com fé propriamente dita. Crendices e superstições não são qualidades específicas dos religiosos, mas de qualquer pessoa em qualquer extrato social. Em meu texto, ao final, eu ainda mencionei essa necessidade de uma auto-crítica sobre a fé e a ciência.
    Essas mesmas crendices que vc enxergou no seio público acerca da religião podem acometer tbm um homem de ciência, o qual acreditará em seus mitos fundadores de sua razão objetiva. Adorno e Horkheimer falam sobre isso em "Dialética do Esclarecimento". Para eles, o raciocínio de um e de outro é o mesmo e formam mitos na sociedade moderna.
    Sendo assim, percebo novamente uma carga extremamente preconceituosa e carregada de axiologismos em seu comentário. Percebo, igualmente, que talvez você possa sofrer destes mesmos mitos que encontrou na religião (mas aqui do lado da ciência ou das letras). Perceba o quão sutil a questão é. Talvez vc já foi suficientemente moldado a descartar o pensamento religioso e relegá-lo ao campo dos pensamentos menores justamente porque vc já trás consigo pré-julgamentos bem solidificados sobre a ciência (o que não deixa de se converter em mitos tão iguais quanto os do lado religioso).
    Escrever sobre este tema é deveras complicado justamente porque antes de escrever, necessitamos fazer esses juízos de valor para só então procurar entender o quanto preconceituosos e tendenciosos estamos sendo. Vc pode até estar envolvido por uma suposta capa protetora da ciência, mas pode, na verdade, estar mergulhado nas trevas e pagar o preço da superficialidade por acreditar na capacidade "mais iluminada" da ciência em detrimento de "outros pensamentos menores".
    Em um comentário que vc escreveu no texto do Duds, eu não resisti e expus o fato de vc ter sido preconceituoso no seu julgamento acerca do cristianismo. Não se trata de esquecer a história, mas sim de procurar entender as várias facetas que podemos extrair dela. Vc pode ler a história sobre vários prismas, não é mesmo? Vc apenas escolheu no seu comentário aquele que melhor lhe interessou, mas nem passou perto de abarcar o fenômeno por inteiro, daí o erro de se afirmar algo dessa maneira.
    Aliás, acaba de me ocorrer algo: vc disse que extraiu essa visão sobre a religião do que vc vê no dia-a-dia. Muitas pessoas acharam que o sol girava ao redor da terra porque enxergavam isso no seu dia-a-dia. Nem sempre as coisas são como as enxergamos e nem sempre o método científico é capaz de superar mitos.

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  3. Então amigo Rafinha, não entendo. Você diz que seu objetivo é “versar sobre o fenômeno religioso e o científico de forma ampla”, mas seu texto não mostra isso. Ao falar da inquisição você parece ter em mento algo muito específico.
    Particularmente, quando falei em religião, tem razão, estou constantemente pensando nas religiões de matriz cristã, sobretudo, a católica e as várias denominações evangélicas. Isso não é fruto de preconceito, mas sim um “não querer” ficar apenas na discussão abstrata. Como a esmagadora maioria da população brasileira está, de uma forma ou outra, ligada á essas religiões, prefiro abordar a questão de forma mais concreta, ou seja, a partir das ações e manifestações dessas religiões no tecido social.
    Quanto a questão da intolerância, a igreja católica e as evangélicas fazem bem mais que manifestar sua liberdade de expressão. Seria inocência não ver isso. Será porque há tanta dificuldade em se aprovar casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo? É só surgir a idéia de que qualquer forma de união deve ter os mesmos direitos sociais, para que as “bancadas da batina” e dos “terninhos” levantem furiosamente a cabeça da intolerância. Nessa sua linha de raciocínio, suponho que também defenda o direito dos grupos neonazistas pregarem o genocídio das “raças inferiores”. Apesar dos malabarismos teóricos, na prática, ao exercer sua liberdade de expressão, católicos e evangélicos apontam o dedo sujo de sangue para toda e qualquer forma de união que fuja aos seus sagrados ensinamentos, mais que isso, colocam seu peso político para que essas pessoas não tenham os mesmos direitos sociais que os cristãos seguidores do rebanho.
    Uma outra questão é que parece que você entende qualquer posicionamento contrário o pensamento religioso como preconceito. Não sou nenhum especialista em “História das religiões” ou algo parecido, porém, fundamento minhas idéias não em “ouvi dizer”, “me falaram”, “acho isso, mas não sei por que” ou “é assim e pronto”. Minhas opiniões são fruto das diversas formas que vejo o pensamento religioso se manifestar na sociedade. Posso até aceitar a beleza dos ensinamentos das “sagradas escrituras”, mas não consigo fechar os olhos para a maneira como as religiões os interpretam e os colocam em prática. É impossível entender a religião apenas a partir do que ela diz de si mesmo, precisamos olhar suas manifestações na política, educação, no dia-dia.
    Um aparte, não disse que todo o meu conceito sobre religião vem de observações no dia-dia, apenas ressaltei que o que mais enjoa meu estomago é a hipocrisia e intolerância que vejo no dia-dia por parte de muitos fanáticos.
    Minha divergência com o pensamento religioso é bem mais profunda que esse “embrulhar de estomago”. Apenas acho que o conhecimento adquirido pela observação, pela razão e pelos experimentos, é infinitamente mais seguro que aquele alicerçado no simples “acreditar”.
    Imagine um mundo sem ciência, onde o “pensamento religioso” ditasse cada ação. Estaríamos ainda queimando mulheres na fogueira por causa das enchentes ao invés de construir “piscinões”.
    Por fim, em uma questão crucial concordo com você. A intolerância não é privilégio das religiões, mesmo que nelas encontre sua trincheira mais fortificada. Lembro novamente de Trotsky, quando disse que “não há como ter razão fora do partido”. Na política, na cultura, nos mais diversos setores da sociedade o sectarismo dá suas caras. Na minha área de estudo, por exemplo, vejo como o marxismo muitas vezes foi transformado em dogma, Marx em um santo e “O Capital” em uma bíblia.

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