terça-feira, 1 de maio de 2012

LEVANTADO DO CHÃO


Gerações da família Mau-Tempo são ceifadas pelo latifúndio. A vida sendo consumida nas searas do Alentejo é apenas o microcosmo da estrutura fundiária de Portugal, tão dramaticamente pintada por José Saramago em seu “Levantado do Chão”. As vidas se passam e parecem não passar, como em um déjà vu, Domingos Mau-Tempo, João Mau-Tempo, Antônio Mau-Tempo...Um personagem sucede o outro, permanecendo a mesma desgraçada existência daqueles  que tem por único horizonte um pedaço de pão para o dia seguinte.  
Começam e terminam guerras, finda a monarquia, a república de Salazar abre suas asas de corvo sobre Portugal, tudo muda, mas não muda. Permanecem os Mau-Tempo, e tantos milhares de outros como eles, existindo apenas com o único fim lubrificarem a máquina construída por Deus, desde o início dos tempos, e diria Saramago, dos Maus-Tempos. Assim diz o padre Agamedes, confortando os pobres desgraçados com as dádivas d’além túmulo. Lamberto, Gualberto, Adalberto e tantos outros “Berto”, representam uma das extremidades da “Santíssima Trindade”, formada também pela Igreja e pela Guarda, que conforta de outras formas, um tanto quanto doloridas. O Latifúndio, tal qual uma entidade viva, nutrindo-se do sangue e suor daqueles que vieram ao mundo tão somente para isso, excreta apenas as formas cadavéricas e sem vida, já que essa nas searas ficou.

Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou gado rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães, põem-nos a crescer de qualquer maneira, tanto faz, preciso é que venham a ter força e destreza de mãos, mesmo que para um gesto só, que importância tem se em poucos anos ficarem pesados e hirtos, são cepos ambulantes que quando chegam ao trabalho a si próprios se sacodem e da rigidez do corpo fazem sair dois braços e duas pernas que vão e vêm, por aqui se vê a que ponto chegaram as bondades e competência do Criador, obrando tão perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral. (José Saramago)


A escrita nada convencional de Saramago, e por vezes até um pouco árida ao leitor pouco familiarizado, transforma-se ao longo dos capítulos. Os personagens, antes “meros repetidores passivos e submissos de discursos alheios”, assumem as rédeas da narrativa, tal qual o fazem com suas próprias existências. Já não são mais simples objetos descritos pelo narrador, ao contrário, se descrevem, assumem as responsabilidades por suas ações. Após décadas de luta, que culminam na Revolução dos Cravos de 1974, os camponeses do Alentejo marcham para o Latifúndio, não mais para servirem Adalberto ou Gualberto, mas agora para serem senhores de si mesmos.
Como uma força da natureza os camponeses marcham. Não há mais “Senhor Padre Agamedes” ou Guarda que os detenham. Os mortos se levantam da terra que antes não lhes pertencia e qual numa procissão, mãos dadas aos seus camaradas, levantam-se do chão para o nascer de um novo dia.

“Levantado do Chão” fala de trabalhadores. Aprendemos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação. (José Saramago). 


Um comentário:

  1. Uma bela postagem. Com Elvis à margem do palco. Com personagens à beira da sociedade em "Trainspotting"; com pessoas vivendo à margem da vida... Como a música, a "Margem da realidade".

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