quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

DEUS E O DIABO DA TERRA DO CAMARADA STALIN

                                                                                                  

                                                                                                     “Manuscritos não ardem”

            Coisas estranhas acontecem na Moscou da década de 1930. O presidente da Massolit[1], Aleksándrovitch Berlioz, tem sua cabeça cortada em um atropelamento nada convencional, isso pouco antes de um estranho tipo ter lhe descrito como morreria. Mulheres recebem sapatos e roupas que desaparecem subitamente deixando-as nuas em plena rua. Um pavoroso gato preto bebe vodka, anda sobre duas patas e provoca terror no apartamento número 50 da Rua Sadôvaia. Dinheiro se transforma em rótulos de bebidas, poetas enlouquecem, pessoas desaparecem... É o diabo, o satanás em carne e osso, ou seja lá do que ele é feito, que resolve visitar a Moscou dos tempos de Stalin. E não está sozinho, vem com seu assustador, mas por vezes cômico séquito.
            Em “O Mestre e Margarida” o escritor soviético Mikhail Bulgákov coloca tipos sociais bastante característicos da Moscou stalinista em um mundo fantástico, que para os leitores latino-americanos pode inclusive lembrar a Macondo de “Cem anos de solidão”. O romance demorou cerca de dez anos para ser finalizado e Bulgákov chegou inclusive a queimar o manuscrito original em razão da perseguição que sofria pelo regime soviético. Finalizado em 1940, semanas antes da morte do autor, “O Mestre e Margarida” ficou restrito apenas ao estreito e íntimo círculo de conhecidos de Bulgákov, pois seria impensável sua publicação naqueles idos. Sobrevivendo há duas décadas escondida, essa obra-prima de Mikhail Bulgákov foi publicada apenas na década de 1960 e mesmo assim, com cortes da censura.
            O Mestre, a que faz referência o título, é um escritor perseguido e colocado no ostracismo pela imprensa e pela crítica soviética. Ao ter seu livro sobre Pôncio Pilatos recusado pela editora e se tornar alvo de perseguição, o Mestre entra em estado de profunda depressão e se interna em uma clínica psiquiátrica. Margarida é a esposa de um rico homem, porém, se apaixona pelo Mestre e por sua obra, dedicando-lhe toda sua existência, inclusive, entregando sua alma ao diabo para salvá-lo. Em razão desses elementos o romance de Bulgákov inevitavelmente traz a mente o Fausto de Goethe, porém, a história do Mestre e de Margarida é apenas uma entre tantas outras que se cruzam e intercruzam ao longo da obra. Inclusive, a amargura do Procurador Pôncio Pilatos por conta da crucificação é parte central do livro.
            Mais que o romance entre Margarida e o Mestre ou o humor negro das situações inusitadas, a obra de Bulgákov é uma crítica contundente e refinada ao regime stalinista. Aliás, o Mestre parece ser o próprio autor colocando-se como personagem, pois tanto o Mestre como Bulgákov queimaram seus próprios manuscritos por conta da perseguição política. As pessoas que satanás e seus funcionários fazem desaparecer sem deixar rastro ou memória lembram muito os chamados “inimigos do povo”, que simplesmente “deixavam de existir no meio da noite”. Os documentos magicamente modificados, que aparecem, desaparecem e reaparecem, logo trazem a mente o falseamento da história pelo regime soviético.
            Bulgákov morreu em 1940, porém, se não tivesse morrido, provavelmente teria morrido. A frase parece estranha e confusa, mas expressa bem o destino que facilmente o escritor teria naqueles anos de intensa perseguição política que precederam a Segunda Guerra. O próprio clima de “realismo fantástico” que permeia “O Mestre e Margarida”, por si só, mesmo que fosse o mais inocente dos romances, já constituiria uma afronta ao “Realismo  Socialista” que o governo tentava impor à arte. Além disso, Bulgákov coloca a todo o momento  algumas questões incomodas, como por exemplo, as lojas e restaurantes especiais, reservados apenas a alguns burocratas ou apoiadores do regime; a briga por vaga nos apartamentos coletivos; o “denuncismo”, que propiciava uma espécie de “Estado policial”, onde cada cidadão poderia estar sendo vigiado pelo vizinho, que na primeira oportunidade denunciaria o colega cobiçando sua moradia ou cargo. Enfim, se a obra tivesse sido publicada provavelmente não seria do agradado do camarada Stalin.
            Aquele que conhece um pouco da história soviética vai se deliciar com a sátira do autor aos aspectos e tipos sociais específicos da vida moscovita na década de 1930. Porém, apesar do viés político que “O Mestre e Margarida” se permite ser lido, ele não se resume a isso. É uma obra-prima, construído com uma prosa fácil, humor sutil e cativante. Assim, mesmo um leitor pouco familiarizado com os aspectos políticos, vai se divertir com as peripécias de satanás e seus funcionários a solta em uma grande capital em pleno século XX.

Saymon de Oliveira Justo


[1] Antiga Associação literária de Moscou.

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