Homem, lobo do homem.
“E cheguei a conclusão de que, no mundo inteiro, só existe uma coisa que é real, embora indubitavelmente seja falsificada de muitas maneiras, (...) as leis do movimento”[1]
O ‘homem em natureza’ de Hobbes é racional no sentido em que concebemos a racionalidade hoje? Para respondermos a essa indagação, proponho um mergulho fictício nas conclusões da scientia civilis hobbesiana. Sim, o ‘homem em natureza’ de Hobbes calcula vantagens, procura por possibilidades e pondera os riscos inerentes a cada uma delas, isso tudo independentemente da vigilância e orientação coercitiva do Leviatã, entendido como o Estado. Mas isto sinaliza racionalidade ou instintos?! Talvez seja preferível pensarmos, aqui, no ‘homem em natureza’ de Hobbes como um ser intuitivo, pré-racional. Algo como uma entidade detentora de um tipo arcaico de racionalidade..., uma razão primeva, rústica, sem acabamento. Uma racionalidade inclinada a favorecer a satisfação imediata das vontades e necessidades animalescas, e não, por exemplo, a racionalidade requintada, “falsificada” e ornamentada que o tempo e o movimento, agindo sobre os complexos processos socioculturais, nos legaram. Infere-se disso que, o homem contemporâneo, diferentemente do homo in natura seria levado, por meios diversos e inconsúteis, ao costume de enfeitar, temperar, protelar, enrustir, adornar, encobrir, recobrir, camuflar e disfarçar nossas intenções, para confundir, driblar, hipnotizar, assustar, alertar, repelir e expulsar os outros lupus predadores, e também para atrair, aliciar, seduzir, provocar, maravilhar e perturbar a presa antes de atacá-la. O ‘homem em natureza’, portanto, quando não esta agindo com o propósito de evitar se tornar a presa, esta agindo para capturar a caça! E para capturar ele pode tanto cooperar e colaborar com outros seres, quanto pode competir com eles, a ponto de eliminar física ou mentalmente o adversário, de modo a se apossar posteriormente da presa, que no contexto “natural” pode tanto ser um caça para alimentação, quanto uma fêmea para reprodução.
Biologicamente, isso tudo seria parte do instinto de caçador que herdamos geneticamente de nossos ancestrais. Mas Hobbes, vivendo no século XVII, não tinha senão sua intuição para pensar o ‘homem em natureza’! Para ele, a cooperação levaria inevitavelmente à formação do Leviatã. A estratégia de ludibriar outros homens, ao invés de colaborar com eles seria a ação natural; a estratégia cooperativa seria artificial, mas preservaria a coletividade envolvida no mutirão de subsistência. Os ludibriadores isolados passariam a ser entendidos como os trapaceiros de hoje, parasitando o corpo leviatânico e enfraquecendo-o, devendo ser expurgados, banidos ou contidos pela força conjunta e consentida do todo associado.
Hoje, a humanidade possui dezenas de discursos que justificam a cooperação em escala estatal, convertendo os intentos egoísticos individuais em objetivos altruístas, humanistas, ambientalistas, preservacionistas, ecumenistas, ecologistas, salvacionistas, messianistas, milenaristas, filantropistas, socialistas, feministas, anti-racistas, etc. E, por outro lado, possui mecanismos de exclusão dos indesejáveis ‘lobos solitários’, os eternos anti-sociais, marginais e foras-da-lei, remetendo-os aos presídios, manicômios, campos de concentração, gulags, corredores da morte e outros expedientes eliminatórios.
Para compreender o “que” seria e “como” agiria o “HOMO HOMINI LUPUS” hoje, sem a intervenção e vigilância de um Leviatã, continuemos nossa breve experiência imaginativa.
Já que, em tese, ele seria o mesmo do tempo de Hobbes (mas não talvez o mesmo do tempo em que o próprio Hobbes o imaginou!), uma vez que os trezentos e sessenta anos que nos separam não constituem tempo suficiente para que ocorram mudanças biológicas e genéticas significativas na espécie humana, acredito que esse experimento mental seja válido.
Evoquemos um planeta Terra pós-apocalíptico, devastado, digamos, por uma colisão cósmica violenta com um cometa das proporções do Shoemaker-Levy 9[2] , aquele que se impactou com o planeta Júpiter entre 16 e 22 de julho de 1994. Optamos por essa catástrofe natural já que ela envolve o fator “movimento mecânico”, muito importante no sistema hobbesiano, e também para não termos de recorrer ao ignóbil exemplo de uma guerra nuclear, que por outras vias também renegaria a noção atual de racionalidade, desta vez por exacerbá-la a dimensões “leviatânicas”[3].
Como seriam e agiriam os sobreviventes humanos de uma calamidade de tamanhas proporções? Talvez possamos vislumbrar a racionalidade do homo homini lúpus de Hobbes conjecturando sobre as condições de subsistência desses supostos sobreviventes. Comecemos pelas estruturas maiores. O que seria feito do ‘estado’, “a multidão unida numa só pessoa, o Leviatã[4]”? Considerando-se que existem diversos Leviatãs no mundo atual, ou seja, diversos estados organizados, em conflito ou colaboração entre si, podemos supor que uma hecatombe planetária de tamanha intensidade venha a “matar” ou “extinguir” a maior parte dos Leviatãs mundiais. Se paquidermes gigantescos como os pré-históricos dinossauros sucumbiram em massa sob um impacto cósmico provavelmente bem menos intenso do que o que estamos imaginando agora, podemos com razoável grau de acerto acreditar que seja inevitável a queda, ainda que temporária, dos estados e das instituições que os caracterizam: organização social, sistemas jurídicos, forças policiais, governos, códigos de leis, constituições, sistemas educacionais, sistemas de saúde pública e seguridade social, sistemas de abastecimento alimentar, elétrico e aqüífero das grandes cidades, sistemas de transporte e de transmissão de informações, telecomunicações, correios e a segurança pública, tudo isso sendo reduzido à pó e escombros, literalmente. Neste cenário sombrio, os infelizes homens e mulheres sobreviventes retomariam a si o que previamente tinham cedido e transferido ao Leviatã, agora um corpo destroçado e putrefato. As opções “naturais”,( i.e, fazer as coisas com total liberdade, usar da violência como e quando bem se entender, rapinar, roubar, usurpar, estuprar, escravizar, exterminar, expulsar e apresar) ressurgiriam violentamente como a única “Rule of Law” vigente. A fome, a sede, o desespero, o medo, a dor e as epidemias transformariam os homens em predadores terríveis dos outros homens. Os sobreviventes se transformariam em verdadeiros ‘lobisomens’, seres de hábitos noturnos, caçando e matando sozinhos ou em grupos, por uns nacos de carniça sobre o grande cadáver do que foi o majestoso Leviatã. Sem as restrições legais que os agora arruinados sistemas jurídicos antes impunham (ainda que imperfeitamente) a todos, os homens reverteriam “(...) aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança[5]”.
Sem os vernizes culturais, sem um sistema institucionalizado de ensino e aprendizagem de uma linguagem comum, sem as aparagens das arestas mais espinhosas do caráter humano efetuadas pelo direito, pelas leis e pela violência intimidatória do estado, só sobrariam a racionalidade do caçador e da presa. Neste hipotético-mas-não-impossível estado de coisas, a própria noção de razão em Hobbes já não se encaixa. Sua acepção assume um sentido muito diferente da noção que veio a ser concebida a partir do Iluminismo, a que nos cabe. Naquela, a razão fica reduzida a simples calculo pré-matemático, intuitivo, de vantagens e riscos. O juízo é particular e egoísta, as maquinações desenfreadas em busca de poder, satisfação e sobrevivência são as únicas normas imagináveis. Nesta,toda a lógica do ‘primeiro eu, depois meus filhos, depois eu de novo’ é explicitada, desvelada sem eufemismos. “Se eu não sobreviver, meu filho não sobrevive, ou pior, é devorado pelos lobisomens do inverno apocalíptico”. Não há mais convenções sociais que inibam ou evitem a ação estritamente egoísta. O único mandamento aqui é o grito que se eleva das próprias entranhas em processo de auto-consumo: “Sobrevivei!!”. O resto é o caos que só o tempo reordenará ou não. É ilusão acreditar que, nesse abismo tenebroso[6], haverá altruísmo, fraternidade e ação desinteressada. Talvez seja ilusório acreditar que mesmo hoje essas virtudes estejam em primazia!
Hobbes foi um matematicista, um mecanicista. Ele próprio reduziu a chamada “razão” ao simples senso de ponderação e racionalização dos impulsos elementares. Vivenciada dentro do Leviatã, a ponderação se reduz a moderação, e esta se traduz em temperança, uma virtude apreciada no homem enquanto zoon politicon. Entretanto, no estado de natureza hobbesiano, o homem é confrontado e provocado por impulsos íntimos e estímulos alheios. Além de por em movimento as engrenagens de satisfação de seus próprios apetites, desejos, aversões e ódios, o homem na natureza luta por poder e satisfação de desejos e necessidades com “ lobos” semelhantes a ele, lobos que o espreitam e que estão em seu encalço. A sobrevivência então não depende mais da adesão a pactos e acordos coletivos, e sim da força bruta, da luta encarniçada entre lobos solitários e entre alcatéias famintas. Na alcatéia ele volta a ter força, mas apenas enquanto atento aos objetivos da alcatéia e em consideração e eles, sempre correndo o risco do sacrifício fatal pela vida pelo grupo, caso haja necessidade. Aqui, ele esta retornando aos estágios iniciais da formação do Leviatã.
E então, no seio do novo monstro que ressurge, as avaliações da conduta alheia recomeçam. O homem civil, deixando a condição de lupus solitariu, volta sua atenção aos ardis e trapaças alheios, queixando-se amarga e desconsoladamente do caráter dissimulado, falso e injusto do outros seres humanos. Mas não repara que suas ações e atividades, e seus próprios discursos, falas, comentários, criticas e enunciados evocam esse mesmo instinto caçador, reproduzindo esse mesmo padrão de mascaramento de propósitos. Essa é a falsificação dos movimentos civis de que fala Hobbes? Deslocar as atenções, distrair as vigilâncias, desfocalizar os entendimentos e comover as platéias/alcatéias seriam parte de uma grande estratégia tramada nas entranhas do Leviatã para garantir sua sobrevivência? Porque desde que passamos a viver em sociedade, precisamos do ‘outro’ para a consecução de nossos intentos, e nossos intentos sempre disseram respeito, ao menos pelos milhões de anos que antecedem o surgimento do Leviatã, à sobrevivência, à reprodução, à dominação, à satisfação de impulsos naturais instintivos. Algo como as “pulsões”, de que falava Freud[7]. Tendo vivido em constante luta contra as ameaças naturais dos predadores mais aptos, e em contínua concorrência com outros predadores, inclusive predadores de nossa própria espécie, desenvolvemos estratégias muito complexas para obter o que precisamos e para evitar virarmos banquete de feras. Estes artifícios, estratégias ou técnicas de caça, e este verdadeiro “manual de sobrevivência[8]” humano, em oposição ao mundo natural com todos os seus perigos, são transmitidos, hoje estou certo, por meios genéticos, e se adaptam ou moldam a linguagem e praticas que herdamos culturalmente. Mas aqui há um aparte que me parece importante. No mesmo pacote herdado de instintos caçadores/competidores ( não há instintos de ‘presas’, mas há instintos de identificação, detecção e fuga dos predadores) existe um gabarito ou arcabouço de linguagem, como diz Steve Pinker, um instinto da linguagem, com o qual todos fomos dotados[9]. Segundo esse psicólogo cognitivo, o que herdamos geneticamente é o instinto para desenvolver o dom artístico da linguagem. Entretanto, penso na linguagem como uma estratégia evolutiva de sobrevivência bem sucedida, pelo menos até o presente. Se transformamos linguagem em ‘arte’ é porque devemos ter instintos separados para linguagem e para as artes.A camada cultural e mais superficial do discurso apresenta referencias contextuais ou históricas aprendidas e apreendidas pelo falante em seu desenvolvimento como ser social. Já a camada profunda do discurso contém referencias arcanas e implícitas ao primitivo mundo de caça, caçadores, presas e predadores; ao mundo de fugas, ciladas, armadilhas, ataques, cercos, abates, brutalidades, desmembramentos, cooperação, partilha, cortejos, galanteios, coitos, cópulas, partos, disputas, lutas, espreitas, vigílias, perseguições, andanças, migrações, marchas, pausas, repousos, sustos, terrores, medos, expectativas, tocaias, rituais, emboscadas, e etc, em que viveram por milhões de anos nossos ancestrais. Forçoso então é admitir que, já que vivemos por milhões de anos evoluindo em um ambiente hostil de caçadas e concorrências sem leis, devemos ter desenvolvido táticas e estratégias para escravizar, cativar, matar, aliciar, roubar, enganar, confundir, desalojar, iludir, apoderar, aprisionar, prender, capturar, intrigar, zombar, caçoar, humilhar, submeter, vingar, desforrar, punir, retaliar, estuprar, raptar, saquear, pilhar,etc. E que criamos aversão por estas ações por influência da cultura, via religião, direito e moralidade, qualidades encontradas nos Leviatãs mundiais.
Vivendo hoje em sociedades ordenadas por leis, costumes e instituições que controlam e restringem certas ações, que estimulam e recompensam outras, e que punem e coíbem ainda outras, somos por vezes levados a pensar que optamos por agir pacificamente (em relação ao próximo) por espontaneidade. Refletimos essa crença em nossos discursos sobre o ‘Bem’, a ‘Justiça’, o ‘Amor’, a ‘Paz’, a ‘Caridade’, a ‘Fraternidade’, a ‘Liberdade’, e até sobre a ‘Democracia’( que se tornou um valor e um dogma amplamente aceito). No entanto, é difícil crer que doze, quatorze ou dezesseis mil anos de cultura tenham sido suficientes para mudar tão radicalmente uma natureza instintiva, geneticamente transmitida, de milhões de anos. Seria atribuir um poder transferência, de superação e de autodisciplina ao homem, e de resignação à influencia da cultura sobre nossa conduta que não condiz com as observações do mundo presente. O que observamos repetidamente e nos mais diversos lugares e épocas são os homens tentando burlar inconseqüentemente desde as mais bobas contravenções até as mais severas, punitivas e retaliatórias leis e condenações sociais. E porquê? Porque o gabarito instintivo aciona certas condutas de nosso arcabouço “esquecido”, o arcabouço do caçador, do homo lupus, do combatente pela sobrevivência. Assim, logo que o indivíduo acredita estar ele ou os seus ameaçados de alguma forma, surge em sua mente a justificativa de que em nome da sobrevivência, da honra e da dignidade pessoal ele pode, e as vezes até deve, matar, roubar, eliminar, calar, submeter outros e subverter a lei e a ordem estabelecida no Leviatã.
A mim, os exemplos fictícios acima remetem, nos mais remotos limites, ao instinto de caçar embutido em nossa natureza a milhões de anos, que nos fazem pensar, calcular, medir, avaliar, ponderar, falar e agir como predadores, ou como caçadores em concorrência; que nos fazem reagir, desconfiar, replicar e conjecturar como ‘presas em potencial’ tentando evitar cair na cilada do predador! Fazemos isso involuntariamente, através de ‘programação’ prévia, biológica, do contrário não seríamos animais, o que de fato somos e que por falso recato não admitimos, preferindo o epíteto de “filhos de Deus”, seres feitos à modesta imagem e despretensiosa semelhança com o Onipotente, Onipresente e Onisciente.
Hobbes criou seu ‘sistema’ tendo em vista sua Inglaterra nas tormentas da guerra civil. Hoje as tormentas se multiplicaram e se ampliaram, e não estou certo de que o modelo hobbesiano se aplica com eficácia ao que hoje observamos. O que tentamos aqui foi uma alegoria teórica e especulativa embasada na sombria visão do homem como homo homini lupus. Entretanto, concorrência, predação humana e falsificações são parte integrante e indissociável de nossa realidade. Metodologicamente falando, eu tentei demonstrar que a qualidade e virtude do Leviatã, tomado como uma realidade formada por nós, dentro de nós e acima de nós, não deve ser confundida com as qualidades, impulsos e virtudes do homem individual. A competição individual na dimensão gregária e social decorre de necessidades que herdamos e de objetivos que inventamos. Mas isso não implica que os Leviatãs também tenham necessidades biológicas competitivas, ainda que retenham objetivos artificiais ‘inventados’, o que os leva, às vezes a empreender ataques predatórios contra outros Leviatãs.
Agressão e defesa. Ataque e resistência. Conflito, concorrência e colaboração. Cooperação e competição. Acredito que a chave explicativa desses comportamentos resida no legado ancestral, instintivo, genético e natural do homem caçador. Homo lupus.
[1] Ver: Skinner, 1996, p. 342. Ou Hobbes, T. M. Opera Philosophica (VITA). (org) Molesworth, 1839. Volume II. p. LXXXI-XCIX.
[2] Sagan, C. Pálido Ponto Azul, p. 354. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
[3] Criamos esse neologismo em referencia ao monstro marinho bíblico chamado Leviathan. Ver:New World Translation of the Holy Scriptures. Isaiah 27:1.
[4] Ver: Hobbes, T. O Leviatã. Parte II, do Estado.
[5] Hobbes, T. O Leviatã. Parte II, cap. XVIII. p, 139. São Paulo: Martin Claret, 2002
[6] Ver Hobbes, T. O Leviatã. Parte IV, Do Reino das Trevas.
[7] Freud, Sigmund, Coleção os Pensadores, ver...
[8] Será que devo acrescentar um comentário sobre isso? Acho que também devo acrescentar um comentário sobre o controverso conceito de natureza humana junto ao de manual de sobrevivência.
[9] Ver: Pinker, S. O Instinto da Linguagem. Como a mente cria a linguagem. Martins Fontes, São Paulo, S.P. 2004.
SIMPLESMENTE MAGISTRAL. SEM EXAGERO, UM DOS MELHORES TEXTOS QUE LÍ NA VIDA.
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Obrigado. Vindo de você se constitui um elogio apreciável, visto que é um de meus maiores críticos, e de termos orientações politicas algo divergentes. Estou no acabamento de textos interessantes..., vem mais coisa por aí. Tozinsky
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