sexta-feira, 11 de março de 2011

A boa nova e a má noticia.

    Este breve ensaio versa sobre os  impulsos biogênicos e genótipos primordiais da espécie, e sobre os condicionamentos sociogênicos  e fenótipos do comportamento humano; especificamente aos relacionados com o  desempenho mental e suas criações.
A antiga “boa nova” primeiro! O Homem é, foi e sempre será livre para ‘pensar’ sobre o que quer que sua imaginação conjecture. Nossa mente, ainda que conectada e dependente do mundo externo, pode abstrair-se e figurar panoramas, eventos, relações e processos astronomicamente diversos das paisagens, ocorrências e dinâmicas que a envolvem! Assim se passa nos sonhos. Assim se passa nas criações artísticas.
   Mas não há, de fato, nada nos sonhos ou nas criações artísticas que não sejam referentes ao que se encontra no mundo exterior, nada que não seja um rearranjo ou recomposição de materiais percebidos e colhidos no ambiente externo e armazenados em nossa memória.
   Eis agora a má notícia, que também nada tem de nova: o que quer que o Homem livremente pense, ele o fará dentro da jaula de sua própria mente, que por sua vez está confinada dentro de “muralhas cognitivas intransponíveis", ainda que não inescrutáveis! Além das muralhas cognitivas, há o desgaste e deformação inexoráveis da informação armazenada na memória. A memória, por sua vez tem seus processos e mecanismos de funcionamento, de armazenagem e exclusão de dados, exclusivamente regidos pela lei de preservação que preside a sobrevivência dos organismos vivos. Não fosse a eliminação constante e gradual de dados não essenciais, de um modo ou outro, à sobrevivência, os seres vivos não se desenvolveriam. Mas da memória genético-cromossômica dos seres unicelulares e virais à massa encefálica humana, com sua enorme capacidade de armazenagem, há um grande hiato, explicado convenientemente pela teoria darwiniana da evolução pela seleção natural.
    Pois bem. E no que consistiriam estas paredes epistemológicas que enjaulam a poderosa atividade mental humana? Creio existirem pelo menos cinco camadas ou facetas identificáveis nesta cela epistemológica que confina, restringe e delimita o conhecimento e a imaginação humanas. Quatro dos lados seriam opacos, e um, apenas um, translúcido. A “tradição” familiar  transmite dados mítico-religiosos, culturais,  éticos e morais, formando uma das paredes delimitantes da consciência humana. Quando não se é criado em um ambiente familiar, instituições sociais suprem as crianças com substratos equivalentes em orfanatos, internatos, creches e etc.; e deixemos de lado, neste momento as implicações da afetividade sobre a formação da mentalidade.
   Quanto aos costumes, modos, hábitos, preferências, estilos,  maquiagens, vestuários, gostos, culinárias, gesticulações, crenças, modas, jogos, entretenimentospalavreados e gírias, todos se incluem dentro do acervo da cultura transmitida, são amplamente variáveis entre as etnias, sociedades e civilizações,  e nada mais são, a meu ver, do que os mais espumosos e voláteis elementos das conjunturas sociais; as manifestações mais visíveis das preocupações imediatistas e banais da natureza humana; ainda que tenham profundo enraizamento antropológico, que sejam objeto de valiosas e respeitáveis pesquisas em várias áreas  do saber, e que causem distúrbios e fenômenos sociais de grande monta.
   Outra faceta delineante seria a ideologia política dominante e as demais ideologias políticas não dominantes que inundam  o ambiente social, derivadas das lutas pelo poder, dominância e status do universo adulto, e que são transferidas, através da vários meios, às mentes em formação das crianças. Elas são responsáveis também pela difusão do saber técnico-científico em voga .
   Um terceiro fator demarcador da expansão imaginativa e cognitiva seria, a meu ver, a linguagem e os sistemas comunicacionais disponíveis e acessíveis ao aparelho cerebral. Pensa-se e imagina-se em bases gramaticais. Isto é notório e tão evidente que anula a necessidade de comprovação mais fundamentada neste momento para a presente discussão.
   Outra muralha restritiva seria formada, também a meu ver, pelos ditames inescapáveis da antropológica natureza humana. São estes ditames que que nos alertam sobre o que é mais importante ou crucial conjecturar em determinado momento. Evitar a morte iminente, saciar a fome, a sede ou o apetite sexual, satisfazer as 'necessidades básicas', são “prioridades” estabelecidas nas profundezas de nossa natureza biológica. Nossa imaginação é constantemente chamada à concretude empírica pelos condicionantes físio-biológicos da dor, do cansaço, do alerta contra o perigo, do prazer, da auto-preservação e da reprodução.
    A  faceta translúcida, que nos proporciona uma visão introspectiva deste conjunto de condicionantes que encarceram o que se pode ‘livremente’ pensar, eu chamaria de “janela hermenêutica”. Ela nos faz perceber que nosso saber é limitado, fragmentário e quantitativo ao invés de qualitativo. “Só sei que nada sei”, disse humilde e perspicazmente Sócrates. Todavia, esta admissão e a compreensão do que ela implica melhora a qualidade do que produzimos em termos de representações  mentais, idéias e discursos.
   Apenas dentro deste “pentágono” maiêutico é que somos independentes para conjecturar livremente acerca do que deve ser, por exemplo,  uma subpartícula quântica; ou do que deve ser o macrocosmo que nos abriga e do qual somos parte; do que ou quem pode ser o “Criadorcósmico; ou do que pode ter sido o “motor aristotélico” que a tudo imprimiu movimento e que ao visível e invisível originou;  ou para cogitar acerca do que pode vir a ser o que se chama “verdade”... ; ou do que pode vir a ser o ‘futuro’, do que que quer que tenha sido o ‘passado’, e do que poderia realmente ser o ‘presente’. Estas três dimensões temporais são criadas e sustentadas pela imaginação (futuro), pela memória (passado) e pela consciência (presente) em atividades e confabulações  constantes.
   Estamos "livres" dentro de uma cela, nossa própria mente, a qual pode ser mais espaçosa, arejada e mobiliada para uns poucos privilegiados;  ou estreita, sufocante e neurastênica, como o é para a maioria. Dentro desta estreita gaiola, encontramos, as vezes ao acaso, as vezes através de grande empenho, um nexo causal entre fenômenos ou processos. Mas são infindos os fatores causais relacionados a qualquer fenômeno. As correntes de "causa-efeito" são múltiplas, cheias de voltas entre sí, de anéis ou gomos que unificam as várias sequências de elos articulados ou engatados uns aos outros em um complexíssimo  sistema. Ao toparmos com estes nexos, nos julgamos detentores de 'uma' "verdade"... Mas esta "verdade" será sempre fragmentária, pois muito limitado é nosso campo de visão introspectiva, no que diz respeito à "objetividade" do mundo concreto; demasiado débil é nossa capacidade de computar todos os dados do mundo exterior; e imprópria, infelizmente, é nossa  habilidade de produzir sínteses teóricas sólidas, universais e duráveis. Nossos paradigmas científicos¹ são apenas provisoriamente úteis e válidos, e só nos surgem através de enormes e trabalhosos investimentos coletivos em erudição e instrução, ainda que alguns se rotulem de "descobridores" ou "inventores" de sistemas de coisas e/ou de leis "naturais" . Mas não se descarta a hipótese de, como discutido acima, vez ou outra o acaso "sortear" um ou outro indivíduo para a nascença dentro de um contexto material/ambiental favorável, e com uma jaula mental bem espaçosa, arejada, paramentada e mobiliada, nutrida com a seiva da curiosidade artística/científica.  Estas condições facilitam bastante a tarefa de se edificar grandes monumentos intelectuais, e de realizar interessantes "descobertas" nos elos das correntes causais que nos atam à tudo, à todos e ao Todo.
¹ Nota. Ver: Kuhn, T. S A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

Um comentário:

  1. Gostei tanto do texto que não resisti a tentação de fazer mais que um comentário. Ficou muito bom e instigante.
    Saimov

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