sábado, 17 de setembro de 2011

Antigas lendas revisitadas e transfiguradas.














Abaixo:Homem-leão de Ulm, escultura de 32.000 anos, período aurignaciano, paleolítico superior.Museu de Ulm, Alemanha.

Sem cápsulas, sem pílulas, sem comprimidos ou infusões. Um homem, subitamente, fazia parte da alcatéia dos leões!

“-O melhor resultado da manipulação genética a serviço do capital”; onde Deus e Ética foram sacrificados em prol da ciência puramente experimental!

Em breve, a curiosa criatura, piedade e compaixão nos devotos despertou. Mas, paradoxalmente, repugnância e horror, fobia e especismo engendrou. Da Igreja um pronunciamento incompassível se enunciou. O inerme, ao invés de batismo, excomunhão e condenação da Santa Sé suportou.

“-Até que o monstro demonstrasse compreensão pelos dogmas cristãos”, disse o primaz a bradar “-(...) entre os crentes e salvos o maldito jamais deve habitar!”. O exemplo amoroso de São Francisco de Assis, nenhuma benevolência no prior pôde evocar.

Mas “Leomem”, como foi chamado, logo manifestou natureza selvagem e independente, livre e irracional. “- Normas, regras, costumes e preceitos, aos adestrados homens é que servem de farol! Ao leão-homem não existe o Bem nem o Mal”. Lei da selva e especialismo orgânico, instinto e intuição. Somente estas disposições impeliam o homem-leão.

Semente das savanas, por tubos de ensaio transitou, e amor materno em ninguém jamais suscitou. Seu pai e criador, explodido e morto por eco-terroristas foi. Mas uma bióloga, sua cuidadora, pela aberração com ambíguo afeto se apegou.

O veloz desenvolvimento físico dos felídeos ele herdou; e logo, força e sagacidade aos dons de caça juntou. Indomável, corações deslumbrados por onde passava deixou. Mas paixão leonina por sua cuidadora subitamente sua ferocidade dominou. “-Qual Édipo e Jocasta de Sófocles!”, diziam os noticiários de modo sensacional. A reação conservadora era piegas e emocional: “-Tal qual Sansão e Dalila, essa relação imoral!”

O eleitorado julgou e a classe política embaixo assinou. Enjaulado e acorrentado o leão-homem logo se encontrou. Mas a moralidade tem suas máscaras, e como fonte de entretenimento e de lucros a desalmada criatura em shows e espetáculos explorada se tornou. Um empresário seus direitos comprou e com sua imagem vantajosamente mercadejou. A grotesca novidade do "Leomem" recordes de bilheteria bateu, pois a curiosidade de um mundo sádico e decadente em pouco tempo acirrou.

Exposto como aberração demoníaca nos centros mais civilizados do Velho Mundo, sua força e beleza, destreza e majestade, aos poucos foram drenadas em seu cárcere imundo. Maus-tratos e castração, zombaria e inanição também deram sua mórbida contribuição. Nem a ficção-aventura de King Kong prenunciava o desfecho sangrento que o episódio ocultava. Mas nada do mundo o homem-leão esperava, e apenas a atenção de sua cuidadora ainda o interessava.

E foi só quando o empresário da desumana turnê, em carícias lascivas no camarote apareceu, que o auditório do famoso ‘Mariinski’ de Petersburgo, um rugido lancinante percebeu. Era um acesso de fúria e dor. O Homem-leão viu sua fêmea ser cortejada por outro animal. A bióloga infiel sentiria na pele o que apenas em estudos de campo observou...; pois um ataque carnívoro sua deslealdade precipitou!

Bramido de dor e ira da jaula se elevou...; contudo, os sinais de perigo iminente a platéia ensandecida desdenhou. Mas toda vilania, sadismo e traição sofridos, que fizeram seu coração com sangue lacrimejar, o humanimal cruelmente enjaulado, o homem-leão duplamente explorado, iria agora plenamente vindicar!

A servir-lhe na vendeta demasiado humana que rapidamente tramou, da coragem e potência do predador se utilizou, e com a lógica e observância de engenheiro calculou. Seu trunfo deveu-se a um "anônimo admirador"*, que a jaula destrancada naquela noite de gala deixou...

O teatro estava cheio, com a platéia extasiada! Autoridades presentes por distinção, cientistas e acadêmicos em busca de créditos e comprovação. No camarote, dois pombinhos a rir da angústia do homem-leão, que em três ágeis e longos saltos, alcançou-os de assalto!!

Enquanto eram devorados pela fera, a dupla venal implorava à multidão: “-Salvem-nos, salvem-nos do animal!!”. Mas a turba urrava e aplaudia, vaiava e se escondia! A mesma sanha dos anfiteatros romanos e atenienses atiçava agora as emoções dos espectadores peterburguenses.

Cólera e medo, vergonha e frustração, deleite e pavor, castigo e punição. Para a desvirtuada espécie dos valores em degradação, o irônico destino lembrou-lhes uma antiga e recorrente lição: a lição de Édipo e Jocasta, de Dalila e Sansão, de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de King Kong e Frankenstein; e agora, a do Homem-Leão...

* O próprio autor.



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