Como a maioria de nossos leitores deve saber, o meu ramo de estudos é distinto da pedagogia (tão comum entre vários integrantes aqui do banquinho), mas o Direito também pode e deve ser discutido aqui, principalmente por sua vertente filosófica.
Sendo assim, resolvi escrever agora sobre um tema jusfilosófico que muito me agrada e também suscita discussões interessantíssimas acerca dos novos rumos dados à ciência jurídica atual: o neoconstitucionalismo e suas consequências.
De maneira alguma pretendo esgotar o tema. Meu intuito neste humilde artigo é tão somente trazer à baila alguns pontos nevrálgicos para futuras e profícuas discussões.
Desta feita, a priori, faz-se necessária explicação sobre o uso da expressão neoconstitucionalismo.
Pelo prefixo neo podemos inferir algo novo, nova geração, nova concepção de um dado conceito.
Assim sendo, se procuramos entender o neoconstitucionalismo, primeiro devemos compreender algumas linhas gerais de seu movimento predecessor, o constitucionalismo.
Para Canotilho
, o constitucionalismo moderno é visto como uma técnica de limitação do poder governamental com fins garantísticos.
Através deste pensamento, a Constituição de um dado país passa a ser instrumento que impede os governantes de fazer prevalecer seus interesses na condução do Estado. É, em sua essência, um movimento político-social que visa limitar o poder arbitrário daqueles detentores do poder.
Dois marcos históricos ilustram a entrada da política governamental na seara constitucionalista: a Constituição norte-americana de 1787 e a francesa de 1791, a qual teve como preâmbulo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
No que tange à contemporaneidade, podemos dizer que o constitucionalismo se materializa nas assim chamadas “Constituições dirigentes”, ou seja, Cartas Políticas onde se lançam profundos e grandiosos ideais a serem um dia alcançados.
André Ramos Tavares afirma que tal “dirigismo” tende a evoluir para um “dirigismo comunitário”, o qual busca difundir a ideia de proteção aos direitos humanos e de propagação para todas as nações.
Contudo, como podemos atestar, a ideia de tão somente haver planos de ação, os quais serão concretizados sabe-se lá em que futuro hipotético não consegue responder os anseios que o mundo contemporâneo necessita.
Destarte, a concepção de um Estado guiado tão somente por normas de natureza programática abre margem para que o governante se esconda atrás da reserva do possível, alegando que a mitigação dos objetivos constitucionais doravante expostos na CF não foram concretizados por questões alheias a sua vontade de governante, algo flagrantemente lascivo e desleal com o povo, único e verdadeiro detentor do poder constitucional.
Dessa forma, a doutrina passa a desenvolver, já no século XXI, uma nova e revolucionária forma de constitucionalismo, denominada neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo pós-moderno, ou, ainda, pós-positivismo.
Por esta nova perspectiva, busca-se não mais meramente atrelar o constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas, e principalmente, busca-se uma verdadeira efetivação das disposições expostas em determinada Constituição. O texto constitucional deixa gradativamente seu caráter retórico e distante das necessidades urgentes do povo e conquista seu sentido na medida que denota uma material efetividade dos direitos sociais.
Trata-se assim da concretização do Estado Democrático Social de Direito.
Como ressaltado acima, o neoconstitucionalismo denota uma era pós-positivista, tendo em vista ela não mais responder aos anseios e dilemas de uma sociedade já lapidada por experiências tristes e angustiantes como as duas grandes guerras mundiais.
Na primeira metade do século XX, o positivismo jurídico permitiu uma série de atos desumanos, tão somente porque o Ordenamento Jurídico era visto pelo olhar racional e frio de um mero sistema científico onde leis só podiam ser concebidas como válidas ou inválidas.
Não havia, nesta época, a adição do paradigma axiológico à aplicação da Lei. O que havia era a fria e crua subsunção do fato à norma. Era como se os juristas positivistas tivessem o condão de espremer o fato, o real, o concreto, fazendo-o moldar-se aos limites de uma determinada lei. Esta lei, por sua vez, ganhava status de legítima tão somente porque era considerada válida perante um sistema jurídico concebido puramente de forma racional e científica, o qual excluía os mais variados escopos da sociedade humana.
Para o positivista, o Direito era, portanto, igual à soma do fato e da norma a ele aplicado.
Já para o Direito contemporâneo, nas lições de Miguel Reale, só é possível sua compreensão como sendo a somatória de três elementos: fato, valor e norma (teoria tridimensional do Direito).
A adição do elemento axiológico, tendo em vista inúmeras razões sociais e filosóficas (razões estas que não menciono por motivos de espaço), permitiu ao direito evoluir de forma mais humanística, pois foge de uma mera deontologia para mergulhar agora na axiologia.
O movimento neoconstitucionalista prima por este objetivo. A efetividade das garantias preservadas no seio da Constituição de um Estado devem, sobremaneira, servir ao gênero humano, e não fazer dele refém de um sistema obscuro e enigmático, portador de estranhas concepções sistêmicas quase kafkianas, das quais o povo não pode e não quer participar.
O neoconstitucionalismo busca transcender a mera legalidade escrita através de uma leitura moral e axiológica do Direito.
Por este prisma, todos os ramos atuais do Direito, sejam o Direito Civil, Direito Penal, Direito Processual etc., devem ser lidos e aplicados sob a luz dos princípios maiores esculpidos no seio de nossa Lei Maior.
E o maior de todos os valores, aquele que inspirou todos os princípios que hoje imperam aqui no Brasil através da Carta de 88 é o princípio da dignidade humana.
Assim, temos hoje, na vanguarda do pensamento jurídico, não mais o Direito Civil, mas sim o Direito Civil constitucional. Não temos mais o Direito Processual, mas sim o Direito Processual constitucional, etc., demonstrando que toda hermenêutica que deve orientar a aplicação das normas jurídicas não pode se coadunar com qualquer situação capaz de mitigar a dignidade humana.
Toda aplicação da Lei só é aplicação efetiva se interpretada não apenas por seus próprios requisitos de validade e eficácia, mas sim, e sobretudo, se de fato contribui para a elevação do gênero humano através da concretização de suas aspirações mais profundas e necessárias e tão desmerecidas por seus representantes políticos.